NUNCA DIZER: “FIZ UMA POESIA”
Uma das coisas mais irritantes no uso da língua portuguesa – além dos cacofônicos “a nível de”, “estaremos enviando”, “eu enquanto sujeito”, “pretender objetivar”, “neste sentido” e outros vícios acadêmicos – é quando um pretenso poeta diz que “escreveu uma poesia”. O leitor tem todo o direito de não saber a diferença entre poesia e poema, agora, faz favor, poetas com livros publicados e tudo, associados a academias de louros e letras, fundadores de pseudo-grupelhos autodenominados livres – como se quem não pertencesse a seu universo fosse necessariamente preso – não têm direito de confundir poesia com poema. Mas na Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, onde até moeda verde se vende e se compra, tudo é possível. E como quem não quer nada, tentarei aqui explicar ao leitor (e me corrijam se eu estiver errado) a diferença entre uma coisa e outra.
O poema é o objeto, a espinha dorsal, a forma, o emaranhado de palavras antes de seu sentido, o significante a espera que o leitor atribua seu significado, o molde das idéias (porém, não as idéias), a caixa silenciosa que fala, o truque da língua, o cimento, a estrutura, a maquinaria textual, enfim, é tudo que lembra a fábrica, o concreto.
A poesia não está apenas no poema. Reside nas películas a 24 quadros por segundo, nas xícaras que mexem da Fernanda, na música, no teatro, no olho da mulher que adora a palavra sobretudo e no amor que sinto por ela, na intenção, no que se quer dizer antes que se diga, na estratégia, no pensar e no falar, na cor do miolo da boca, num filme de Godard, na tela de Edward Münch, nas coisas que não dependem de descrição, na intenção, no tudo que é abstrato.
Aquilo que realça de preto no branco do papel é poema, o que se compreende disso é poesia. O que está impresso nos livros de poesia é poema, mas não é poesia. Pode se dizer “a poesia de Fernando Pessoa”, coisa bem diferente de se dizer “o poema de Fernando Pessoa”. O que se pode decorar é poema, o que se guarda sem se lembrar é poesia. Portanto, aquilo que se escreve é o poema, e ele pode ou não conter poesia, e a essência do que se despreende dali é o que se pode chamar de poesia.
Faz tempo que não escrevo um poema, apesar de ter prometido a Vanessa um que fosse ruim, para que ela coloque na caixa de um projeto gráfico igualmente ruim. Tarefa tão inglória quanto escrever, talvez um bom poema. Mas, como diria o poeta Marco Vasques, não sou habilitado para falar de poesia e de poemas, porque sou ex-poeta, apesar de procurar aqui e ali uma poesia qualquer no meio dessa prosa porosa que é o mundo. A poesia está para a prosa, assim como o amor está para a amizade, cantou o poeta que nunca publicou um livro de poesia e que nunca escreveu um poema. Prova maior de que estas coisas, se têm nome distintos, devem ser mesmo diferentes.