27 de julho de 2007

Auto-retrato de Luna e eu no Rosen Café

NUNCA DIZER: “FIZ UMA POESIA”

Uma das coisas mais irritantes no uso da língua portuguesa – além dos cacofônicos “a nível de”, “estaremos enviando”, “eu enquanto sujeito”, “pretender objetivar”, “neste sentido” e outros vícios acadêmicos – é quando um pretenso poeta diz que “escreveu uma poesia”. O leitor tem todo o direito de não saber a diferença entre poesia e poema, agora, faz favor, poetas com livros publicados e tudo, associados a academias de louros e letras, fundadores de pseudo-grupelhos autodenominados livres – como se quem não pertencesse a seu universo fosse necessariamente preso – não têm direito de confundir poesia com poema. Mas na Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, onde até moeda verde se vende e se compra, tudo é possível. E como quem não quer nada, tentarei aqui explicar ao leitor (e me corrijam se eu estiver errado) a diferença entre uma coisa e outra.
O poema é o objeto, a espinha dorsal, a forma, o emaranhado de palavras antes de seu sentido, o significante a espera que o leitor atribua seu significado, o molde das idéias (porém, não as idéias), a caixa silenciosa que fala, o truque da língua, o cimento, a estrutura, a maquinaria textual, enfim, é tudo que lembra a fábrica, o concreto.
A poesia não está apenas no poema. Reside nas películas a 24 quadros por segundo, nas xícaras que mexem da Fernanda, na música, no teatro, no olho da mulher que adora a palavra sobretudo e no amor que sinto por ela, na intenção, no que se quer dizer antes que se diga, na estratégia, no pensar e no falar, na cor do miolo da boca, num filme de Godard, na tela de Edward Münch, nas coisas que não dependem de descrição, na intenção, no tudo que é abstrato.
Aquilo que realça de preto no branco do papel é poema, o que se compreende disso é poesia. O que está impresso nos livros de poesia é poema, mas não é poesia. Pode se dizer “a poesia de Fernando Pessoa”, coisa bem diferente de se dizer “o poema de Fernando Pessoa”. O que se pode decorar é poema, o que se guarda sem se lembrar é poesia. Portanto, aquilo que se escreve é o poema, e ele pode ou não conter poesia, e a essência do que se despreende dali é o que se pode chamar de poesia.
Faz tempo que não escrevo um poema, apesar de ter prometido a Vanessa um que fosse ruim, para que ela coloque na caixa de um projeto gráfico igualmente ruim. Tarefa tão inglória quanto escrever, talvez um bom poema. Mas, como diria o poeta Marco Vasques, não sou habilitado para falar de poesia e de poemas, porque sou ex-poeta, apesar de procurar aqui e ali uma poesia qualquer no meio dessa prosa porosa que é o mundo. A poesia está para a prosa, assim como o amor está para a amizade, cantou o poeta que nunca publicou um livro de poesia e que nunca escreveu um poema. Prova maior de que estas coisas, se têm nome distintos, devem ser mesmo diferentes.

14 de julho de 2007

conversa com o compadre lau, janeiro de 2000, foto da helô espada.

CULTURA É ESPORTE?

Outro dia encontrei, na avenida Mauro Ramos – onde o poeta Jéferson Lima via os desígnios da vida e compunha sinfonias regulares – o Manco Asturras. Desde o desaparecimento do bravo e destemido jornal Ego, o qual fui orgulhosamente co-editor, junto com Renato Tapado, Iur Gomes e o próprio Jéferson Lima, que eu não esbarrava com Manco, seu colunista festejado. Advogado não-atuante, mas jornalista desempregado, segundo o próprio, porque nenhum veículo sério o contrataria, nem mesmo para entregar jornal, o cara andava cabisbaixo e reclamando da vida, da qual, aliás, ele ainda não havia descoberto o sentido. Quer coisa mais estúpida do que gravata?, ele dizia. Não tem sentido, aquele nó maluco, aliás, roupa não faz sentido, batom, quer coisa mais esquisita que batom? Depois parou, ciente de que pensava sozinho e mudou de assunto.
Depois destrambelha a falar. Disse que outro dia lembrou de um corredor olímpico, talvez por estarmos próximos dos jogos Panamericanos, o Ben Johnson , que bateu, em uma olimpíada (nem o Manco nem eu lembramos da qual), o recorde mundial dos cem metros rasos. Porém, para desgraça dele e do esporte mundial, Ben foi flagrado no exame anti-doping. Sua marca não valeu, e o atleta, mesmo sendo homônimo do poeta inglês, caiu no esquecimento. Mas para Manco Asturras, naquele dia Johnson bateu sim o recorde , porque ele o viu fazer isso, bem diante dele, na tela da tevê. Se estava “chapado”, isso não sera relevante.
A partir desse momento, Manco se transformou, de cabisbaixo passou a mover os braços e gesticular, combinado a uma fúria que há tempos eu não via, como se a visão de Johnson correndo aqueles cem metros o tivesse levado a outra tese, a de que o esporte é a atividade mais moralista do ser humano. Esporte é cultura, sim, ele esbravejava, porém duvidada se o oposto fosse válido.
Para que eu compreendesse melhor o raciocínio, citou o poeta Edgar Alan Poe. Já pensou, prosseguiu Asturras, se alguém resolvesse “anular” todos os contos do cara, ou a construção racional – mesmo que levada à um teor metafísico – do “Corvo” só porque Edgar tomava uns tragos para escrever? O resultado que o poeta almeja deve ser necessariamente questionador, já o esporte só vale se for travestido de teor moralista, de resultados, de uma “vitória” que não existe na literatura ou na música. Está para nascer o atleta que der quatro saltos no salto triplo e brigue pela marca, reiventando o atletismo. Já parou pra pensar porque três e não quatro?, ou dois, ou cinco, ou uma centena de saltos? Já pensou que revolução seria?, sorri Asturras, já num delírio retórico que dava gosto de ver.
É por isso, continuou o jornalista desempregado, que os governos e os empresários investem milhões em esporte, mas torcem o nariz, ou sacam o revólver, quando se fala em cultura. Claro, cultura gera discurso, quebra a monotonia do pensamento, questiona e reinventa valores, cria paradigmas, faz com que o ser humano reaja contra as arbitrariedades de outros seres humanos, enfim, cultura não é esporte, concluiu Asturras, só o esporte é cultura, um tipo de cultura acomodada, ensimesmada e moralista. Já viu atleta reclamar de governo?
Manco reviveu naquela esquina com a Crispim Mira, depois enfiou a mão no bolso, deu adeus e um sorriso. E eu pensei: O manco é o cara, votarei nele para governador, mesmo que ele jamais se candidate, porque lembrou do poeta Drummond, quando disse que intelectual e o poder raramente se dão bem, porque é fácil usar o esporte, mas é difícil barrar a cultura.

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...