24 de novembro de 2007

Não julgarás

A tarefa de julgar é sempre provida de uma incontestabilidade quase doentia. Cabe ao juiz determinar o presente e o futuro de muito vivente. Abrãao, segundo uma das narrativas mais emblemáticas do Velho Testamento, teve o próprio Deus como sentenciador do futuro de seu filho: a morte na ponta de um punhal. Uma espécie de sentença-teste, pois não concretizada, que ficou na história das grandes narrativas como metáfora muito mais de obediência quase cega do que de justiça.

Se a Lei deveria ser igual para todos - o que sabemos tratar-se de uma inverdade - em que instância ou instituição, tirando as várias possibilidades de apelação contra a sentença, mas não contra o juíz, um cidadão pode julgar um magistrado? Até onde sei, em nenhuma.

Dois casos recentes de sentenças judiciais são atentados violentos contra os direitos humanos. Um deles, mais remoto, aconteceu quando um juiz deu parecer contrário a um jogador de futebol que recorreu à justiça por compreender que havia sido vítima de preconceito. A pérola do magistrado foi dizer que futebol era "coisa de homem" e não de "boiolas", demonstrando preconceito e contrariando a Constituição, a qual ele deveria prezar, talvez mais do que ninguém. É garantido o exercício do esporte a quem quer que seja, independente de suas escolhas pessoais, igualmente garantidas.

Outro caso, mais recente e mais sintomático ainda, foi a sentença dada pelo juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, de Sete Lagoas, em Minas Gerais, dizendo que a recém promulgada Lei Maria da Penha - que pune com mais rigor os idiotas que, não tendo argumento ou inteligência, espancam mulheres - de inconstitucional.

Não contente, Rodrigues ainda escreveu que o controle sobre a violência contra a mulher "tornará o homem um tolo", e que "A desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (...) O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!". É de fazer chorar de tanta ignorância. Por sorte, essa semana, um Conselho de Magistrados decidiu puni-lo. Como, ninguém sabe. Mas já é costume o corporativismo dessa gente abafar rapidamente tais casos. E mais cedo ou mais tarde, o preconceito e a ignorância do juiz, que tem a coragem de acreditar na superioridade masculina, influenciará em outras ações cujas vítimas sejam mulheres.

Estes dois casos são apenas pequenas amostras da formação dos magistrados brasileiros. Em sua maioria católicos, brancos, machistas, misóginos, moralistas, ricos, partidários, governistas, como poderemos crer que suas preferências, ideologias e crenças não influenciem em decisões que, repito, pode mudar o presente e o futuro de muita gente?

É claro que existem aqueles que estão preocupados unicamente com a Lei, apesar de esta ser confusa, contraditória e muitas vezes mal escrita por outro tipo de gente: os deputados. Estes, em sua maioria, muito mais do que os magistrados (que ainda têm uma formação jurídica) mal sabem ler e falar sua própria língua, e igualmente são católicos, brancos, machistas, moralistas e ricos, e com um interesse unicamente pessoal.

O argumento mais contundente a favor dessa tese são as cruzes instaladas nas paredes de magistrados, das assembléias e câmaras legislativas, contrariando frontalmente a Constituição brasileira, que determina que o Estado seja laico, separando-o da religião. Mas se nem magistrados, nem deputados ou vereadores se importam com isso (por mais que possa parecer tolo, mas tem uma carga de compreensão de suas faltas de compromisso com a lei tão clara), para que se importariam com a justiça do cotidiano? Será que aguardam uma sentença divina?

17 de novembro de 2007

Tudo sobre minha mãe

Dona Rosa nasceu em Perimbó, em 1939, no mesmo ano em que um único homem, chamado Adolf, com a anuência de um povo arrasado por uma economia de salve-se quem puder, decide matar judeus, artistas, negros e qualquer outro ser humano que ele considerasse "anormal". A data tão próxima me assusta, porque ouço conversas baixas nas ruas, de gente, como Adolf, ainda crente que humanos são divididos entre "certos" e "errados".

Sonho como Kafka nos telhados de Praga, imaginando ser arrastado por processos dos quais, ou desconheço, ou os considero insanos, escondendo-me de balas e palavras perdidas, disparadas por essa gente que "limparia" o mundo dos "impuros", em nome de uma certeza que extraem das igrejas, de uma parte da mídia e de reclames avisando a todo instante que você só é "bacana" se tiver dinheiro pra comprar alguma coisa, mesmo que não precise dela.

Dona Rosa sobreviveu à guerra e aos 17 anos pensa que poderia namorar um primo-irmão. Como os parentes não aprovaram a idéia, e obediente como devem ser os cordeiros de Deus, casou com outro rapaz, muito mais alto que a maioria, de bigode ralo, e que carregava madeiras para a construção da futura capital do país. Dirigia um novinho em folha FNM, sigla, para ele, não da Fábrica Nacional de Motores, menina dos olhos de Juscelino, mas de Feliz Natal Manoel.

Por causa da mesma política de privilegiar automóveis e asfalto, em detrimento das estradas de ferro, bem mais seguras e não-poluentes, mas que não foram prioridade "nesse país", o recém-marido de Dona Rosa morreu atropelado por um "potente" Volkswagen, numa distante cidade chamada Palmas, no Estado de São Paulo, bem próximo do Natal de 1961, apenas onze meses depois do casamento.

Na barriga, dona Rosa trazia esse escriba que vos enche a paciência nesse canto do DC todos os sábados, e que nasceu em 1962. Onze anos depois não havia mais Hitler, mas uma ditadura tão estúpida e igualmente apoiada quanto a dele. Apesar de dona Rosa sobreviver à sua pequena tragédia pessoal, e desconhecendo o processo histórico no qual estava (apenas por viver) submersa, casou-se com outro homem. Este, por desconhecê-lo, e também por nunca ter dito a palavra pai como se fosse minha, acabei por chamá-lo assim durante os últimos 30 anos.

Dona Rosa, depois de tanto o filho encher sua cívica paciência, votou pela primeira vez em Lula, a despeito de seu marido, que havia ajudado a eleger os dois Fernandos anteriores, Collor e Cardozo. Só agora penso que, mais do que por despeito de Lula ter sido um trabalhador igual a ele, o fato de se chamar também Fernando pode ter contribuído para a escolha. Dona Rosa, porém, dizendo que sua vida de aposentada havia melhorado, e muito, e por ter um coração mais do que de mãe, porque sua válvula mitral é de metal (mas ela já se acostumou com o barulho), votou em Lula novamente.

Em 2008, quanto completou 68 anos, aquele primo distante, agora viúvo, proibido na época por causa da crença de que filhos de parentes nascem com rabo de porco, volta a encontrar dona Rosa. Eles excursionam a Aparecida do Norte, e ele a pede em casamento, não sem uma relutância típica das mulheres, que insistem com a mania em dizer "não" quando mais querem dizer "sim". E quando as palavras finalmente adquirem sua real carga semântica, ela aceita dizendo "sim", e vai viver com ele em Curitibanos, centro do Estado, lá onde alguns sonham que seja a capital.

A história de dona Rosa, cruzando inexoravelmente com a minha, não nos redime de nenhuma responsabilidade histórica só porque é pessoal. Pelo contrário, por sua dedicação à honestidade a qualquer custo, é meu fortificante para praguejar e lutar contra palavras e balas perdidas que tentem eliminar seres humanos por causa da cor, da crença, do sexo, de suas idéias, e das escolhas pessoais, enfim.

Ah, sim, consta que os dois vivem felizes para sempre.

3 de novembro de 2007

O etecétera e a especulação imobiliária

O desenhista Will Eisner, criador do romance gráfico, já escreveu pelo menos duas fábulas sobre a mudança da paisagem de sua cidade, Nova York, naquilo que tem a ver com a especulação imobiliária. Uma delas chama-se O edifício, e a outra Um contrato com Deus e outras histórias do cortiço. Como não sei sequer traçar uma linha torta, contarei uma pequena história mais próxima de nós, moradores dessa já emblemática Ilha de Nossa Senhora dos Aterros.

Um casal e seus filhos decidiram montar um café. É bom avisar que cafés e padarias não fazem parte da tradição mais remota da cidade. E não poderia ser qualquer café, deveria ser singular, que abrigasse uma espécie de gente que vive à margem da vontade quase doentia de se especializar. Um café onde coubesse a generalidade, onde se pudesse debater idéias, onde poetas pudessem ler seus poemas, onde se pudesse beber mais do que as aguadas cervejas nacionais, redondas e quadradas, onde se pudesse comer bem e devagarinho, sem a ânsia das comidas rápidas, enfim, onde se pudesse tomar, inclusive, um bom café.

O local foi escolhido, um prédio baixo, dois andares, ali na Gama DEça. A decoração, sem nada de ostentação burguesa e cafona, tornava a estada por lá sempre agradável. Uma conexão à Internet tornou o lugar escritório de alguns profissionais e, uma vez por mês, o poeta Monel Ricardo de Lima e o músico Demétrio Panarotto, que, numa homenagem a Fellini, chamavam aos encontros de 8 e meio, levavam escritores, poetas, filósofos para falar sobre o árduo ofício de pensar sem compromisso, numa época em que esse tipo de atividade é pecado capital, ou do capital.

O café, por estas peculiaridades, atraiu essa gente esquisita que faz poesia, sempre tão danosa à república, como previu Platão. O sucesso do Etecétera - sim, já estava esquecendo de recitar seu nome, tão apropriado, por dar a deixa "aos que ainda vêm" - não tinha nada a ver com o sucesso dos megainvestidores, que, quando seus empreendimentos dão certo, imediatamente mudam de postura e abrem mais e mais filiais, geralmente descaracterizando a singularidade do proposto inicial. O Etecétera deu certo até antes de ontem porque não queria crescer, ficar rico, apenas dar a seus freqüentadores a possibilidade de se imaginarem em casa.

Mas aconteceu o que é mais corrente na Ilha dos Aterros. Uma construtora resolveu tornar o pequeno edifício, que ainda dava um pouco de sol à calçada, num grande edifício. É bem possível que seja construído com uma arquitetura similar àquelas que abundam por aqui, sem originalidade, enfim, caixotes ou pombais de concreto. Antoni Gaudi, o grande arquiteto catalão, não sobreviveria na Ilha, se dependesse de uma elite igual a nossa, que está se lixando para a paisagem urbana e o conforto visual de seus habitantes.

Na quarta-feira passada, numa despedida memorável para a cultura da Ilha, o grande poeta carioca Chacal, que acaba de lançar sua obra completa, Belvedere, recitou seus poemas, conversou com a platéia e lançou uma pequena caixa com um apontador dentro, onde em sua tampa estava escrito "não me desaponte". Poderia servir de aviso aos construtores, se eles tivessem uma formação melhor que a mera tecnocrata que tiveram em nossas universidades, onde as ciências humanas parecem ser perda de tempo. Mas quem compreende metáforas, se o objetivo é demolir?

A poesia leva tempo, mas também tem sua força demolidora, porque torna seus leitores em críticos desse costume mal educado dessa gente que quer mais destruir do que transformar. O fim do Etecétera é apenas um exemplo das centenas que abundam nessa Ilha cada vez mais cheia de prédios, automóveis, cimento e lugares pra encontrar pessoas igualmente cada vez mais raras, que são as que ainda debatem idéias.

Como Oswald de Andrade, ainda tenho uma utopia que um dia a massa comerá o biscoito fino que ele fabricou, mas para isso, talvez, eu tenha que mudar de cidade, etecétera, etecétera...

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...