3 de novembro de 2007

O etecétera e a especulação imobiliária

O desenhista Will Eisner, criador do romance gráfico, já escreveu pelo menos duas fábulas sobre a mudança da paisagem de sua cidade, Nova York, naquilo que tem a ver com a especulação imobiliária. Uma delas chama-se O edifício, e a outra Um contrato com Deus e outras histórias do cortiço. Como não sei sequer traçar uma linha torta, contarei uma pequena história mais próxima de nós, moradores dessa já emblemática Ilha de Nossa Senhora dos Aterros.

Um casal e seus filhos decidiram montar um café. É bom avisar que cafés e padarias não fazem parte da tradição mais remota da cidade. E não poderia ser qualquer café, deveria ser singular, que abrigasse uma espécie de gente que vive à margem da vontade quase doentia de se especializar. Um café onde coubesse a generalidade, onde se pudesse debater idéias, onde poetas pudessem ler seus poemas, onde se pudesse beber mais do que as aguadas cervejas nacionais, redondas e quadradas, onde se pudesse comer bem e devagarinho, sem a ânsia das comidas rápidas, enfim, onde se pudesse tomar, inclusive, um bom café.

O local foi escolhido, um prédio baixo, dois andares, ali na Gama DEça. A decoração, sem nada de ostentação burguesa e cafona, tornava a estada por lá sempre agradável. Uma conexão à Internet tornou o lugar escritório de alguns profissionais e, uma vez por mês, o poeta Monel Ricardo de Lima e o músico Demétrio Panarotto, que, numa homenagem a Fellini, chamavam aos encontros de 8 e meio, levavam escritores, poetas, filósofos para falar sobre o árduo ofício de pensar sem compromisso, numa época em que esse tipo de atividade é pecado capital, ou do capital.

O café, por estas peculiaridades, atraiu essa gente esquisita que faz poesia, sempre tão danosa à república, como previu Platão. O sucesso do Etecétera - sim, já estava esquecendo de recitar seu nome, tão apropriado, por dar a deixa "aos que ainda vêm" - não tinha nada a ver com o sucesso dos megainvestidores, que, quando seus empreendimentos dão certo, imediatamente mudam de postura e abrem mais e mais filiais, geralmente descaracterizando a singularidade do proposto inicial. O Etecétera deu certo até antes de ontem porque não queria crescer, ficar rico, apenas dar a seus freqüentadores a possibilidade de se imaginarem em casa.

Mas aconteceu o que é mais corrente na Ilha dos Aterros. Uma construtora resolveu tornar o pequeno edifício, que ainda dava um pouco de sol à calçada, num grande edifício. É bem possível que seja construído com uma arquitetura similar àquelas que abundam por aqui, sem originalidade, enfim, caixotes ou pombais de concreto. Antoni Gaudi, o grande arquiteto catalão, não sobreviveria na Ilha, se dependesse de uma elite igual a nossa, que está se lixando para a paisagem urbana e o conforto visual de seus habitantes.

Na quarta-feira passada, numa despedida memorável para a cultura da Ilha, o grande poeta carioca Chacal, que acaba de lançar sua obra completa, Belvedere, recitou seus poemas, conversou com a platéia e lançou uma pequena caixa com um apontador dentro, onde em sua tampa estava escrito "não me desaponte". Poderia servir de aviso aos construtores, se eles tivessem uma formação melhor que a mera tecnocrata que tiveram em nossas universidades, onde as ciências humanas parecem ser perda de tempo. Mas quem compreende metáforas, se o objetivo é demolir?

A poesia leva tempo, mas também tem sua força demolidora, porque torna seus leitores em críticos desse costume mal educado dessa gente que quer mais destruir do que transformar. O fim do Etecétera é apenas um exemplo das centenas que abundam nessa Ilha cada vez mais cheia de prédios, automóveis, cimento e lugares pra encontrar pessoas igualmente cada vez mais raras, que são as que ainda debatem idéias.

Como Oswald de Andrade, ainda tenho uma utopia que um dia a massa comerá o biscoito fino que ele fabricou, mas para isso, talvez, eu tenha que mudar de cidade, etecétera, etecétera...

Um comentário:

Nayana disse...

Caramba, você teve o trabalho de visitar o meu. Que honra!

Oooolha... quando passaste do meu lado lá no clube minha amiguinha Nira perguntou "conhece o Fábio Brüggmann?", "sei, o do DC? que tem?', "acabou de passar aqui do lado". Mas nessa hora aina não tinham começado os pulos.

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