1 de dezembro de 2007

FORMIGAS

Um copo vazio – que antes de ficar nessa condição (ainda que cheio de ar) esteve até a borda com Cointreau –, deixado ali por dias e dias, misturado a papéis, canetas, livros e uma bola para exercícios de fisioterapia na mão, atraiu muitas formigas, bem miudinhas.
É claro que o cronista pensa em referências, pois sabe que a roda já foi inventada e o que resta a ele é fazer a homenagem devida a seus inventores e, vez ou outra, tentar mudar o desenho delas. A primeira das referências é o poeta Mário Quintana, que, ao ver uma formiga atravessando a página em branco compreendeu o frêmito e todo sentido da vida. A segunda vem da novela Um copo de cólera, de Raduan Nassar, quando o protagonista tem a mais furiosa e emblemática luta com tais insetos da história da literatura, pelo menos da que conheço. A terceira é a auto-referência, pois já escrevi certa vez sobre a arte de cachimbar formigas, quando a avó, ao ver o neto ali na cozinha sem fazer nada, e perguntando coisas sem respostas lógicas, mandava o rapaz cachimbar formigas. Talvez por isso ele fuma até hoje uns cachimbos, em busca de formigueiros para encher suas galerias de terra com o fumo de seu tabaco.
Não pretendo eu aqui brigar com formigas, nem mesmo cachimbá-las. Que sei delas? Que quanto menor, talvez, mais enchem a paciência? Sobem na mão e literalmente formigam. Deveria, inclusive, agradecê-las por se darem a temas recorrentes e assuntos para mais um sábado, e por fazer com que eu saiba um pouco mais desses seres tão organizados, como contam biólogos e zoólogos em geral, mesmo que sua ordem e organização jamais venham me convencer de que um dia eu mesmo devo ser como uma formiga.
Uma das lições aprendidas foi saber – fato relevante para a convivência hamoniosa entre dois bichos tão diferentes: formigas e humanos – que esses bichinhos adoram Cointreau. Não sei se antes ou depois das refeições. Tentarei, da próxima vez, observar melhor e ver de onde elas vêm antes de se refestalarem no resto de sabor e do cheiro de laranja do copo vazio.
Tentei, também, saber se elas ficaram ou não um pouco bêbadas com o resto de licor. Mas isso é impossível de perceber, porque naturalmente andam apressadas, e padecem de senso objetivo de direção. Elas andam cambaleantes, seja antes ou depois do Contreau, porém – talvez aí resida o frêmito descoberto por Mário Quintana – elas sempre sabem onde querem ir. Diferente dos humanos, bêbados ou não, que sempre vão a um lugar com aparente objetividade, em linha quase reta, porém não sabem ainda quem são, de onde vieram e para onde vão.
Formigas talvez não pensam a que vieram nesse mundinho esquisito. Mas sabe-se que, ao contrário dos humanos, se protegem coletivamente de ataques de seus predadores como eu, que as cato a cada vez que me formigam os braços, a mesa e o teclado. Humanos, ao contrário, destroem-se a si mesmos e vivem cada um por si, quando pensam que são diferentes; e puxam os sacos um dos outros, quando pensam que são iguais.

Um comentário:

Ana Araujo disse...

Sim... são sereszinhos inspiradores. A avó de um amigo tinha uma teoria que Garcia Marquez certamente usaria muito bem: a de que as invasão das formigas era prenúncio de mudança. Acreditar nessa crença sempre me acalenta.

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