16 de fevereiro de 2008

noite grande na guarda do embaú

Carta a uma jovem leitora

Apesar de sua pouca idade, tens uma percepção de mundo de alguém que viveu o suficiente para considerá-lo incompreensível, sem sentido. Na verdade, esqueça. É somente uma firula literária esse modo de começar uma carta. Até porque conheço velhos que ainda têm alguma esperança de que tudo possa mudar. Assim como jovens como você que não acreditam que isso possa acontecer. No resumo da ópera, não é a idade de alguém que lhe confere desesperança, mas a experiência. As coisas mudam, sim, mas quando não estamos mais pensando naquilo que gostaríamos para o qual elas mudassem. Talvez seja por isso que eu goste mais dos desesperados.

Você me pede que eu te diga alguma coisa, mas eu não sei o que dizer, a não ser tudo aquilo que você diz ter lido até agora, e que, confesso, é sempre a mesma coisa. O que posso te informar mais de forma privada além do que digo de forma pública? Que posso dizer além do desprezo que sinto pela paixão sem medida que certos sujeitos têm pela ignorância e poder? Da ojeriza que destila dos meus poros contra qualquer tipo de injustiça? Da tristeza que sinto quando vejo meninos cheirando cola, dormindo na rua? Da impotência enorme que me deixa quase mudo porque nada, absolutamente nada estamos fazendo contra o aumento desmesurado dessa barbárie que nos espreita?

Claro, pequena leitora, que tenho enorme culpa no cartório. Sou preguiçoso, lento, herdeiro de Macunaíma, o que confirma sua origem enviesadamente germânica. Canso-me ao ter que mais uma vez usar argumentos tão óbvios contra falcatruas tão descaradas, de ter que implorar às instituições que apenas vejam o óbvio. O que posso fazer? Você me pede que eu seja mais lírico, como fui outro dia. Mas era caso tão excepcional, que até me envergonho de tê-lo feito.

Não me peças conselhos, pequena. O poeta é um sujeito tão às avessas - ainda que eu não escreva versos há mais de década, sinto como um deles - que Platão expulsaria a todos de sua República. O poeta, pequena, é um erro no código genético da humanidade, como dizia o Paulo Leminski, porque tudo o que ele te dirá é que esqueças frases como "conquistar o mercado", "ser alguém na vida", ou "construir seu futuro", exatamente o contrário do que a maioria peça que você faça. Ele te dirá que você mande às favas os horários, as convenções, os "compromissos inadiáveis da vida", e que apenas sorria mais e que feche os olhos em direção ao sol e o tome de graça, sem pensar em nada, apenas senti-lo.

Portanto, pequena, tudo o que posso dizer daquilo que esperas é que faça ouvidos moucos aos poetas, porque eles só pensam em transformar a sua vida em linguagem, como único sentido da existência. Sei que deponho contra mim mesmo, porque o instrumento com a qual podemos lutar contra essa babaquice toda é a palavra.

Mas a barbárie ronda nossa casa em formas com as quais não imaginamos que possa existir, como falta de imaginação, tomada da coisa pública como se fosse privada, gente exposta na vitrina e balas perdidas. Como o poeta Rilke um dia escreveu a um jovem poeta, a única coisa que posso fazer é desaconselhá-la. E eu sei (como é típico de poetas) que isso é em si uma enorme contradição, mas que posso fazer?

4 comentários:

Anônimo disse...

Fabinho grandão,
tá lindo, cara!
Fiquei comovida, e olha que sou dessas que ri de tudo, e prefere nunca se mostrar comovida com as coisas.
Pois fiquei...
OBRIGADA!
bj

Anônimo disse...

Fábio, pois é. Esta photo da Marion Ripp me lembra aqueles dias quando fundamos o cinema nas plagas lageanas com o filme Tema para Chuva. Aqueles dias gelados de Nossa Senhora das Lagens onde eu lia, todos os sábados, com a pureza dos primeiros dias, as poesias do Quintana, que vinham folhas de tenra alface no Caderno H do Correio do Povo.

Dias idos e vividos e os cachimbos.

Karl

Telma Scherer disse...

salve, salve

ítalo puccini disse...

lindo pra caramba, Fábio!
sensibilidade que só os bons poetas podem apresentar, mesmo sem escrever versos há tanto tempo.

é a lingaugem que faz o mundo girar. criar sentidos para ela é nosso dever.

abraços,
Ítalo.

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