8 de março de 2008

Coisas para se fazer enquanto se espera uma carta

Está certo que não existe nada mais ultrapassado do que aguardar a chegada de uma carta. Elas não são mais escritas desde o século passado, quando ainda eram esperadas não sem ansiedade e até uma certa melancolia. Por isso, escrevi esse pequeno manual para aqueles que ainda esperam cartas chegarem pelo correio.

1) Inventar o jogo das folhas secas de Fu Man Chu; 2) Recobrir o assoalho com pedras de armário seco; 3) Telefonar para o a companhia telefônica e reclamar de qualquer coisa, sendo que você sempre terá razão no que quer que seja da sua contenda; 4) Do mesmo modo, xingar o prefeito, o governador, os deputados federais e estaduais; 5) Calcular o tempo inexato que uma cuspida leva do alto da torre da Catedral até o a nova ruína do Miramar em dia de vento sul; 6) Contar quantas ruas históricas, com pavimento e tudo, foram repavimentadas para pagar à empreiteiras o dinheiro investido nas disputas eleitorais; 7) Ir para a fila do banco, qualquer deles, e fazer uma campanha com os outros incautos freqüentadores (chamados "clientes") para arrecadar fundos para que o banco (quase falido com seus altos lucros) possa contratar mais funcionários para que, enfim, a fila acabe; 8) Ir à cidade de Halberstadt, ao leste da Alemanha, tentar ouvir o eco do primeiro acorde da música Tão devagar quanto possível, de John Cage, que deverá ser executada nos próximos 639 anos; 9) Reler sua árvore genealógica desde o começo dos tempos, até chegar a Deus; 10) Ir ao teatro e, como Mário Quintana, contar as carecas na platéia; 11) Certificar-se de levar todas as respostas do questionário de perguntas afoitas do senhor Estevão, publicada na revista Certezas, de 1072, antes, portanto, da invenção da prensa de Gutemberg; 12) Lembrar a todo instante, mesmo quando executar todos estes passatempos, do que aconteceu em Boston, em 1912; 13) Desenrolar o papel higiênico pela casa e, munido de fita métrica, conferir se ele tem mesmo os 50 metros anunciado no rótulo; 14) Torcer para que tenha apenas 49 metros, pois haverá, assim, um motivo a mais para passar o tempo enquanto espera sua carta, tentando mostrar aos funcionários do Procon que você foi lesado, e que aquele metro era fundamental para terminar bem o seu dia; 15) Reler as cartas anteriores que, por serem datadas do século passado, ainda vinham pelo correio; 16) Tentar de todas as formas possíveis escrever, no céu, no papel, na parede da casa, no muro da escola, nos guardanapos, nos pés do pombo-correio, nas cascas da laranja, no celular, no orkut, por e-mail, nos sinais de fumaça, o quanto ficarás feliz quando receber, enfim, essa carta; 17) Jogar cara ou coroa até que depois de dezessete tentativas, finalmente, a moeda caia com a cara virada pra você; 18) Dizer aos meus 17 leitores, mas principalmente àquela que se diz a de número nove, que escrever sobre coisas possíveis de se fazer enquanto se espera uma carta é, também, uma das coisas.

Tal e qual Ricardo Reis, vendo o mundo passar diante da porta do quarto do hotel, com toda a paciência dele, espero uma carta. Não precisa ser registrada, nem por sedex. Uma carta simples, com um selo bem bonito, me basta.

2 comentários:

Anônimo disse...

Sublime tão.

Karl

ítalo puccini disse...

Vejo que o número de leitores aumentou :)

Há alguns textos (tempo) que você vem com essa escrita mais, como podemos dizer, poética (é a palavra que me vem agora à mente). Tenho gostado muito!
Sempre bom lê-lo!

abraços,
Ítalo, Jaraguá do Sul (o trigéssimo oitavo leitor)

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