5 de abril de 2008

A Primeira Missa

A exposição da tela Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles, no Museu de Arte de Santa Catarina, além da possibilidade de apresentar aos conterrâneos do pintor a famosa obra, suscita outros debates sobre arte, representação e seu significado na história.

Os livros de história do Brasil nos quais estudei quando guri, quando "ensinavam" a chegada dos portugueses (com forte teor patriótico e moral por causa da ditadura militar), "ilustravam" a relação dos indígenas com os invasores com o quadro de Vitor Meireles.

Realista e clássica, sem contar o conteúdo "conciliador", bastante apropriado para uma ditadura que negaria qualquer discórdia entre índios e portugueses, a obra coube como uma luva para ilustrar o período. Qualquer garoto ou garota dessa época, e não sei se hoje ainda ela é usada com este propósito, acreditaria que a primeira missa rezada em solo tupiniquim aconteceu bem daquela forma.

É claro que a tela em si não tem culpa alguma de seu uso, ainda que o artista tenha voltado as costas para o modernismo que nascia, e que negava o realismo pretensamente histórico, figurativo e contemplativo. Vitor fez o que achava que tinha que fazer e pronto. O que nos resta, além de admirar a obra, é refletir sobre a representação que a arte o tempo todo tenta fazer, seja da natureza, seja da história, e qual forma os artistas contemporâneos escolhem para tal. Quando vi a primeira vez uma reprodução da tela, ligada até o umbigo com o que a professora "ensinava" sobre a chegada dos portugueses, não liguei as datas. Acreditei mesmo que Vitor estava lá, tal e qual um fotógrafo, naquele acontecimento histórico. Normal para o garoto caipira que talvez ainda more em mim.

Até hoje me pergunto se foi omissão deliberada da professora em não avisar que o artista havia nascido mais de trezentos anos depois do fato e que, é óbvio, ele havia imaginado a cena. Talvez até tivesse gostado mais dele. Seria ainda, mais que uma lição sobre história, o princípio de um debate necessário sobre arte, pois, de alguma forma, Vitor não pintou suas angústias ou seu tempo, como é comum que se pense de artistas. Pelo menos não na Primeira Missa. Mas não podemos exigir de professores de história que pensem sobre arte e representação, apesar de eu crer que estão intimamente interligadas.

É curioso que sessenta anos após Victor retratar a famosa cena, Marcel Duchamp pintou um bigode numa réplica da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci. Esse ato, que colocou a pintura em xeque (o que pintar depois?) foi o mais emblemático da história da arte, assim como o Modernismo, que voltou as tintas para a arte em si, criando mil modismos e quase fazendo com que, para ser artista, fosse necessário representar a própria arte, como se a natureza e a cultura já estivessem esgotados para tal. Mas essa metalinguagem, de alguma forma, era também uma representação da cultura.

Muitos críticos reprovam o artista figurativo por ser "velho", e louvam performances e abstracionismos apenas porque são "modernos". Mas não podemos esquecer que Duchamp já pintou os bigodes na Gioconda faz muito mais que sessenta anos, quase oitenta, para ser preciso. A estas alturas, não é o fato de ser figurativo, performático, realista ou o que mais, que faz de uma obra algo que seja importante. Mas também, ainda bem, não saberia dizer agora o que é. Preciso ver de perto a Primeira Missa, talvez ela me ensine algo que ficou perdido há muito tempo, entre a realidade histórica e a imaginação do artista.

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