31 de maio de 2008

Progresso é comer combustível

Havia uma propaganda de combustíveis nos anos 1950, que já era emblemática sobre a relação que o ser humano teria (e hoje tem) com os meios de transporte. Um fusquinha saía de um posto de combustível e desaparecia no infinito da estrada, com uma frase igualmente emblemática, que dizia mais ou menos assim: "Nós ainda iremos longe juntos".

Como tudo o que a civilização ocidental faz no presente, e quase sempre em prol apenas de pequena parcela da população, a preocupação com as conseqüências futuras nunca está nos planos. Por conta disso, a influência dos norte-americanos sobre o Brasil impôs, além de um golpe militar que até hoje pagamos pelos erros, um modelo de desenvolvimento calcado exclusivamente no transporte rodoviário. Claro, eles precisavam vender automóveis e o combustível.

Passado o tempo, eles continuaram a defender os combustíveis baseados em matéria prima não renovável, aparentemente abundante e eterna. E se não fosse suficiente, bastava inventar armas de destruição em massa nos países com altas reservas de petróleo, destronar governos, matar gente inocente e se apoderar delas, as reservas, porque o povo que mora lá não é de interesse do império.

Mas invadir países é cada vez mais caro, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista da imagem que o império tem no mundo. Os Estados Unidos estão em mais um impasse por conta disso, numa crise já anunciada por economistas graduados. Algumas crises, como a do crédito imobiliário, foram sinais óbvios da deterioração da economia do império. Tanto que, no dia primeiro de maio, mesmo que a grande mídia não tenha dado uma nota sequer, todos os 29 portos da costa do Pacífico dos Estados Unidos paralisaram. A reivindicação do Sindicato dos Portuários, de acordo com seu presidente, Bob McEllrath, foi o fim imediato da guerra no Iraque e o retorno das tropas. McEllrath, consciente do caos econômico, disse: "Não ficaremos inertes enquanto nosso país, nossas tropas e nossa economia estão sendo destruídos por uma guerra que está nos levando à bancarrota ao montante de US$ 3 trilhões".

Diante disso tudo, com o aumento absurdo do consumo de petróleo e com o investimento numa guerra que já não se tem certeza se dará mesmo lucro, o império decidiu investir ostensivamente no biocombustível, e, no caso deles, baseado no milho. A solução para o presente mais uma vez trará sérios prejuízos ao futuro, principalmente dos países mais pobres, cujas cestas básicas representam até 60% dos gastos, enquanto que nos países ricos mal passa dos 15%. No resumo da ópera, o preço dos alimentos começou a subir em todo o mundo. Observadores da ONU, informa o Le Monde Diplomatique, já usam o termo "tsunami silencioso" para designar tal catástrofe socioeconômica, que poderá deixar até cem milhões de pessoas passando fome.

Não bastasse o fato de se plantar mais cereais para boi comer - para depois ser abatido para uma minoria se alimentar dele - agora teremos produção de alimentos para colocar nos nossos possantes automóveis. A máxima do progresso de agora em diante será morar nos automóveis e se alimentar de seus combustíveis. Ao que tudo indica, parece que iremos longe mesmo.

24 de maio de 2008

Confissões de um ex-poeta

Fui parido numa casa, já demolida - quase coisa inevitável nesses dias - em Lages, em 1962. A parteira, muito gorda (tanto quanto sua doçura, me disseram), entalou-se comigo no colo numa porta bem menor do que ela, mas muito maior que eu. Neste dia, a sensação de que à medida em que cresço (e quase cheguei aos dois metros) diminui o resto das coisas e das pessoas, proporcionalmente, nunca mais me abandonou. A única coisa que jamais diminui foi a imensidão do planalto, incluindo o pôr-do-sol dos mais solitários e comoventes que vi, de uma melancolia de doer. E reconheço que a imensidão do Planalto e a sensação de pequenez diante dele influenciou demais minha própria melancolia. Dou muita risada, mas é só disfarce, porque não sei as respostas para minhas próprias perguntas, e talvez se tornasse uma na outra as teria.

O nome Fábio veio de um tio, morto tragicamente. O primeiro nome - que abandonei desde cedo - e que só amigos íntimos, a família e o gerente do banco sabem, veio do próprio pai, também morto de forma trágica quando minha mãe me carregava de oito meses na barriga. Carrego, portanto, nomes de mortos e, junto com eles, a responsabilidade desse "carregar".

Não li nada sério até os 17 anos, nem mesmo as obrigações escolares, pelo fato de que o objeto livro não existia em casa. Mesmo assim, aos 9, ganhei um livro de orações, cuja primeira coisa que fiz com ele foi cheirá-lo. Talvez por isto tenha escolhido como uma das profissões fazer livros. E cada vez que um deles pára nas minhas mãos, repito o ritual do cheiro, com as mesmas sensações.

Aos 20 anos, entendi que Lages era apenas um retrato na parede e parti para o Desterro, aqui nesta Ilha onde vivo até hoje. Entrei para o curso de Letras, na UFSC, mas abandonei quando um professor me reprovou "por faltas", como se dizia, apesar de ter dito que meu trabalho sobre Cruz e Sousa era um dos melhores que havia lido e, em seguida, quando disse a uma professora que achava inútil saber se uma frase é subordinada assindética ou não. Ela disse que a gente deveria saber para poder escrever melhor. Talvez por isto eu até hoje não saiba escrever. Mesmo não sabendo, publiquei, só por teimosia, alguns livros. Comecei achando que era uma poeta genial, até descobrir que não passava de um barato imitador de Mário Quintana. Mas já era tarde, o livro estava publicado. Depois vieram outros, até que lá pelo terceiro ou quarto, para o bem da poesia e da literatura, larguei mão dela.

Sou, portanto, um ex-poeta, e mesmo não conheço outro. A pasta com os poemas, como na canção musicada pelo Jaguarito, joguei-a pelas costas, como se joga uma ferradura, sem olhar para trás. E os últimos versos do ex-poeta que fui diziam assim: "início das grandes civilizações / índios faziam cinema / mais fácil fazer navios / que poemas".

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Essa breve confissão foi escrita, com um terço de modificações, para o projeto "Um dedo de prosa", do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC, realizado em maio de 2005. A republico aqui por perceber que nada mudou desde então, do mesmo modo, como crença no relativismo, que tudo mudou desde então.

17 de maio de 2008

o gato sem fone de ouvido, numa rua em são chico.

Zero hora, dezoito graus (uma epifania)

A vida a pé, depois de um aprendizado dolorido e bom (aprender sempre dói) sobre o corpo que carrego, numa porção de ossos espiralados, carnes, músculos, vísceras, pele, distribuídos numa altitude de um metro e noventa e um acima do nível do mar, é uma experiência, muito mais que um argumento teórico

Sem o automóvel (outra experiência), saio dos Blues Velvet com a missão de caminhar pela Felipe Schmidt, atravessar a Praça XV, descer até a Hercílio Luz, percorrer suas calçadas diante do paredão que cedo faz sombra e, finalmente, subir alguns passos na Hermann Blumenau.

No fone de ouvido, Chico Buarque canta: "Que bicho feroz são seus cabelos, que a noite você solta?". As luzes do calçadão - àquela hora, zero no painel que pisca, alternada com o anúncio da temperatura (dezoito graus) - iluminam o palpável cartão postal e um único cidadão. Ele desconfia de mim, eu dele. Para desviar os ombros da tensão, lembro dela dizer: "A vida com fone de ouvido parece um vídeo clipe". Pouco antes, à tarde, ela mesma me retorceu, e ensinou-me que tudo no corpo conspira para ser uma espiral, e fez arrastar-me no assoalho de madeira pra que eu tivesse consciência de que não sou apenas um sujeito que pensa, mas que tem tudo isso que já disse antes no corpo e, é claro, o próprio corpo. Eu perguntaria, mas a questão que eu não faço (porque sei a resposta), e a resposta da qual ela sabe a questão (e por isso não se importa que eu não faça) não tem mesmo a menor importância histórica enquanto atravesso a rua em direção à praça.

Continuo pisando com os três pontos dos pés. Primeiro o calcanhar, depois os ossos, os quais não lembro mais o nome, aqueles pouco antes dos dedos. A música continua: "Seu beijo nos meus olhos, seus pés, que o chão sequer não tocam", e o cenário da cidade sem a sonoridade diurna me lembra, primeiro, que se nada no mundo houvesse, ainda assim haveria música (Nietzsche), e, segundo, daquela com a qual sonho e desejo, mas que as distâncias nos fixam apenas no sonho, nas palavras e nas canções trocadas, assim, igual como os pés devem ficar, juntos, como eu já havia escrito sobre o viver.

A canção continua a perguntar, como ela disse um dia, sem que eu tenha memória da sua voz: "Que horas você some? Que horas você volta?". Sou agora um fantasma e vislumbro uma epifania, mas não há palavra que dê conta dos sentimentos. Isso ela também disse.

Quase na minha rua, já vislumbrando a janela lateral - a qual ela conheceu em fotografia e deseja sentar em sua soleira - sinto que se as palavras não dão mesmo conta da realidade. Para que serve então a realidade, se gosto mesmo é das palavras? Pouco mais de três mil caracteres nunca serão suficientes para descrever tal epifania. "Quem é essa voz, que assombração, teu corpo carrega?", continua a canção a tocar em todo meu corpo, e eu a querer, sempre querer, e perguntar, ao final: que queres daquilo que sentes?

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...