17 de maio de 2008

Zero hora, dezoito graus (uma epifania)

A vida a pé, depois de um aprendizado dolorido e bom (aprender sempre dói) sobre o corpo que carrego, numa porção de ossos espiralados, carnes, músculos, vísceras, pele, distribuídos numa altitude de um metro e noventa e um acima do nível do mar, é uma experiência, muito mais que um argumento teórico

Sem o automóvel (outra experiência), saio dos Blues Velvet com a missão de caminhar pela Felipe Schmidt, atravessar a Praça XV, descer até a Hercílio Luz, percorrer suas calçadas diante do paredão que cedo faz sombra e, finalmente, subir alguns passos na Hermann Blumenau.

No fone de ouvido, Chico Buarque canta: "Que bicho feroz são seus cabelos, que a noite você solta?". As luzes do calçadão - àquela hora, zero no painel que pisca, alternada com o anúncio da temperatura (dezoito graus) - iluminam o palpável cartão postal e um único cidadão. Ele desconfia de mim, eu dele. Para desviar os ombros da tensão, lembro dela dizer: "A vida com fone de ouvido parece um vídeo clipe". Pouco antes, à tarde, ela mesma me retorceu, e ensinou-me que tudo no corpo conspira para ser uma espiral, e fez arrastar-me no assoalho de madeira pra que eu tivesse consciência de que não sou apenas um sujeito que pensa, mas que tem tudo isso que já disse antes no corpo e, é claro, o próprio corpo. Eu perguntaria, mas a questão que eu não faço (porque sei a resposta), e a resposta da qual ela sabe a questão (e por isso não se importa que eu não faça) não tem mesmo a menor importância histórica enquanto atravesso a rua em direção à praça.

Continuo pisando com os três pontos dos pés. Primeiro o calcanhar, depois os ossos, os quais não lembro mais o nome, aqueles pouco antes dos dedos. A música continua: "Seu beijo nos meus olhos, seus pés, que o chão sequer não tocam", e o cenário da cidade sem a sonoridade diurna me lembra, primeiro, que se nada no mundo houvesse, ainda assim haveria música (Nietzsche), e, segundo, daquela com a qual sonho e desejo, mas que as distâncias nos fixam apenas no sonho, nas palavras e nas canções trocadas, assim, igual como os pés devem ficar, juntos, como eu já havia escrito sobre o viver.

A canção continua a perguntar, como ela disse um dia, sem que eu tenha memória da sua voz: "Que horas você some? Que horas você volta?". Sou agora um fantasma e vislumbro uma epifania, mas não há palavra que dê conta dos sentimentos. Isso ela também disse.

Quase na minha rua, já vislumbrando a janela lateral - a qual ela conheceu em fotografia e deseja sentar em sua soleira - sinto que se as palavras não dão mesmo conta da realidade. Para que serve então a realidade, se gosto mesmo é das palavras? Pouco mais de três mil caracteres nunca serão suficientes para descrever tal epifania. "Quem é essa voz, que assombração, teu corpo carrega?", continua a canção a tocar em todo meu corpo, e eu a querer, sempre querer, e perguntar, ao final: que queres daquilo que sentes?

2 comentários:

Beatriz disse...

O que queres?
Não sei que sei, porque a censura impede meu saber.
Fabio, adorei o texto e o gato!
Abraço

Anônimo disse...

"Pouco antes, à tarde, ela mesma me retorceu..."

MMMM, quem será? mistere na madrugada vazia. Alguém disse que a vida é uma luta contra a força da gravidade, será mesmo?
Zé Paiva

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