28 de junho de 2008

Uma noite chuvosa e fria

Não passo a segunda linha de um romance, conto ou novela que inicie com a frase: "Era uma noite chuvosa e fria...". A maioria deles começa desse modo. Se não assim, com todas as letras e respiros da frase, é com algo muito semelhante. Não me importo primeiramente com as histórias, porque não acredito numa suposta hierarquia delas, e porque a história do fulano não pode ser melhor do que a da sicrana. Gosto mesmo é do jeito como elas são contadas. O repertório sintático, rítmico, vocabular da língua portuguesa é singular, a única a ter o admirabilíssimo "ão", como disse Mário de Andrade. Mas mesmo assim, buscamos frases feitas o tempo todo.

Frase feita não é a mesma coisa que "ditado popular", do tipo "quem com ferro fere com ferro será ferido", nem a mesma coisa do que aqueles enunciados tirados de uma boa prosa, ou de um filósofo conhecido, como Bernard Shaw, por exemplo: "A juventude é bela demais para ser gasta com os jovens". A frase feita é quase atávica, das que quando começamos a usar a língua já estavam alinhavadas, maduras, na ponta da língua dos iniciados, com todos os seus significantes únicos e seus significados possíveis. A frase feita é quase uma prisão, ela está inscrita no DNA da língua, e quem quer contar uma história não deve começar com uma delas. Sim, talvez possa terminar. Seria até interessante uma ficção que terminasse, de repente, assim: "Era uma noite chuvosa e fria".

Um dos principais inimigos do prosador é o adjetivo. Contra ele já se armaram "grandes" escribas. Notem que acabo de propositadamente usar um deles. O poeta Drummond, apesar de usá-lo, até com freqüência (eu poderia ter escrito "certa freqüência"), em um dos seus versos, o discrimina. Ezra Pound, no ABC of reading, sugere que o escritor, ao invés de usar "homem rico", use "homem com dinheiro". Para ele, os dois substantivos quase podem ser vistos, ao contrário do adjetivo "rico", que encerra a frase, limitando a classificação da palavra homem como sendo "apenas" um rico.

Na nossa vidinha coloquial, sempre puxamos do armário da memória as frases feitas para ajudar na conversa com o outro. Exemplos são variados. Toda quadrilha presa pela polícia é "fortemente armada". Será que a descrição "armada" não é suficiente? Uma quadrilha apenas "armada", que já é um adjetivo, não daria conta de explicar? Se escrevessem: "armada com facas, revólveres e porretes", olha quanto substantivo, seria melhor. O "fortemente" sequer dá noção de número. Quantos portavam armas? Cada qual possuía mais de uma? Bem melhor é dizer, mesmo que seja uma frase feita, o "até os dentes", porque evoca uma imagem. Imagine alguém com uma faca entre os dentes, como o pirata que, ao subir o cordame do navio, tinha que ter as mãos livres para tal, e, por isso, punha a faca entre os dentes.

O repertório é enorme, e varia de acordo com a capacidade de imaginação de cada cultura. O sujeito aquele tinha uma "fé inabalável", o outro tomou um "porre homérico", os enganos parecem que sempre são "ledos", ainda que poucos saibam que ledo é sinônimo de "alegre". O outro saiu em "desabalada carreira"; as paixões não existem se não são "desenfreadas"; as formas, do mesmo modo, só existem se "estonteantes" ou "esculturais". Por isso e por qualquer coisa que pareça com isso, sempre desconfiarei de um prosa que comece em uma noite chuvosa e fria.


Diário Catarinense, 28 de junho de 2008

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