27 de setembro de 2008

À moda de Georges Perec

Eu me lembro de um dia ter visto o sol e dito que ele estava fraco, e que desapareceria em breve. Era outono, estação propícia para que estrelas como o sol fiquem aparentemente mais fracas. Eu me lembro de ter pensado que tudo à vista é aparente.

Eu me lembro de ter negado levar uma xícara vazia, com resto e cheiro de café, para uma cozinha escura. A avó, talvez não apenas por isso, quebrou sua régua de medir roupa nas minhas costas. Não é da dor física que me lembro agora.

Eu me lembro do dia em que colei o nariz no vidro que me separava do berçário onde vi Luna pela primeira vez, mexendo sem parar os braços, porque, segundo o parteiro, acreditava que ainda estava no útero, e procurava as paredes da barriga. Mais tarde, também me lembro, perguntou-me se havia cadeira naquele útero, porque deveria ser muito cansativo aguardar por nove meses sem ficar cansada.

Eu me lembro de ter entrado na biblioteca, com o amigo de nome Oswaldo (onde anda?). Levou-me até a estante onde estavam dois volumes de A Divina Comédia, e disse: "Leia, é uma loucura". Eu li, e nunca mais voltei. Eu me lembro do dia em que alguém ficou fascinado pela edição fac-similar de O Guardador de Rebanhos, do Fernando Pessoa, talvez mais do que por mim.

Eu me lembro do dia em que demoliram a casa onde nasci, acocorado, no meio da rua. Algumas lágrimas, ainda que seja inconfessável falar em choro na cara dos meninos, se misturaram à terra da rua. Eu me lembro do rancor que guardei por pessoas que colocam casas abaixo. Eu me lembro de uma árvore (porém não de seu nome) que matei por causa das bolhas de sabão sopradas de um de seus troncos.

Eu me lembro do cheiro de sob as cobertas e do gosto do leite, onde o biscoito de amido de milho era mergulhado. Eu me lembro do e-mail que recebi no dia de meu último aniversário. A sensação de promessa e espera estava, de certo modo, registrada nele. Porém, nenhuma promessa, nenhuma espera, eu havia dito um dia antes, porque não há nada a esperar, nem o que prometer, ainda que eu te espere e te prometa.

Georges Perec escreveu Je Me Souviens, entre outros. Eu me lembro quando a Cláudia emprestou-me o livro. Tentarei lembrar-me de continuar na próxima semana.

20 de setembro de 2008

  • O livro e o filme

    O livro Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, é o último romance com a cara do século passado, na mesma linha de O processo, do Kafka, e A peste, do Camus, pela sua metáfora do modo como os seres humanos vivem juntos, e de como se relacionam entre si e com suas mediações. No caso dos dois anteriores a mediação se dava pelo Estado. No caso de Saramago, pela ausência dele, pelo menos no fim do enredo, já que o Estado é responsável por ter atirado os cegos num mundo sem nenhuma adaptação a eles, onde nem mesmo eles, com exceção de dois personagens (o que já era cego e a que não ficou cega), tinham experiência na escuridão. A diferença de Saramago com Camus e Kafka é que no Ensaio sobre a cegueira o Estado também se torna cego, na figura da ministra da saúde.

    O filme homônimo, dirigido por Fernando Meirelles, tem o mérito de manter o mesmo clima do livro de Saramago. Porém, o mais interessante do livro, que é sua narrativa lenta, e as observações do narrador, e, claro, a força da sua linguagem, Meirelles não conseguiu manter. Existem diretores que gostam de mostrar e outros que não gostam. Pode parecer um contra-senso, se falamos de cinema. Mas é nítida a diferença rítmica existente entre a cinematografia de alguns diretores como Tarkovski, Kurosawa, Bergmann e Godard, por exemplo, e a da maioria do cinemão norte-americano, com muito mais cortes do que os outros. Quanto mais corte, menos se vê. Quanto menos se dá a ver, menos se dá a refletir.

    Meirelles optou pelo cinemão, mais chegado à publicidade e ao entretenimento, com uma infinidade de cortes rápidos, e diálogos semelhantes aos cortes, igualmente rápidos. Sem tirar-lhe o mérito de soluções pertinentes a essa linguagem, quase um videoclipe, porque altamente competente, é uma pena que toda a reflexão metafórica do romance tenha se perdido.

    A diferença básica entre filme e livro, é que o romance de Saramago é uma quase-fábula da condição humana, e, a cada página, o autor força o leitor a fechar o livro para pensar, como escreveu Barthes sobre o prazer do texto. O ritmo alucinante do filme apenas prende a atenção e pega pela emoção. Meirelles fez um filme de ação, talvez por exigência do mercado, baseado num livro que é de reflexão, coisa da qual o mercado foge sempre.

Nota: No novo projeto gráfico do Diário Catarinense, a coluna sofreu um corte de mais de 1.000 caracteres. Como eu estava acostumado com o modelo anterior, acabei me passando no assunto, e tive que cortar depois Por isso, talvez, pareça que este texto esteja faltando pedaço. E está mesmo. só depois lembrei que aqui no blogue eu poderia tê-lo postado na íntegra. Mas, perdeu-se no universo digital e n a preguiça macunaímica para reescrevê-lo. De qualquer modo, a essência do que penso sobre essa relação filme/livro está aí. Quem quiser debater mais, é só comentar a postagem. Aquele abraço.

SOBRE O ÓDIO

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