À moda de Georges Perec
Eu me lembro de um dia ter visto o sol e dito que ele estava fraco, e que desapareceria em breve. Era outono, estação propícia para que estrelas como o sol fiquem aparentemente mais fracas. Eu me lembro de ter pensado que tudo à vista é aparente.
Eu me lembro de ter negado levar uma xícara vazia, com resto e cheiro de café, para uma cozinha escura. A avó, talvez não apenas por isso, quebrou sua régua de medir roupa nas minhas costas. Não é da dor física que me lembro agora.
Eu me lembro do dia em que colei o nariz no vidro que me separava do berçário onde vi Luna pela primeira vez, mexendo sem parar os braços, porque, segundo o parteiro, acreditava que ainda estava no útero, e procurava as paredes da barriga. Mais tarde, também me lembro, perguntou-me se havia cadeira naquele útero, porque deveria ser muito cansativo aguardar por nove meses sem ficar cansada.
Eu me lembro de ter entrado na biblioteca, com o amigo de nome Oswaldo (onde anda?). Levou-me até a estante onde estavam dois volumes de A Divina Comédia, e disse: "Leia, é uma loucura". Eu li, e nunca mais voltei. Eu me lembro do dia em que alguém ficou fascinado pela edição fac-similar de O Guardador de Rebanhos, do Fernando Pessoa, talvez mais do que por mim.
Eu me lembro do dia em que demoliram a casa onde nasci, acocorado, no meio da rua. Algumas lágrimas, ainda que seja inconfessável falar em choro na cara dos meninos, se misturaram à terra da rua. Eu me lembro do rancor que guardei por pessoas que colocam casas abaixo. Eu me lembro de uma árvore (porém não de seu nome) que matei por causa das bolhas de sabão sopradas de um de seus troncos.
Eu me lembro do cheiro de sob as cobertas e do gosto do leite, onde o biscoito de amido de milho era mergulhado. Eu me lembro do e-mail que recebi no dia de meu último aniversário. A sensação de promessa e espera estava, de certo modo, registrada nele. Porém, nenhuma promessa, nenhuma espera, eu havia dito um dia antes, porque não há nada a esperar, nem o que prometer, ainda que eu te espere e te prometa.
Georges Perec escreveu Je Me Souviens, entre outros. Eu me lembro quando a Cláudia emprestou-me o livro. Tentarei lembrar-me de continuar na próxima semana.