20 de setembro de 2008

  • O livro e o filme

    O livro Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, é o último romance com a cara do século passado, na mesma linha de O processo, do Kafka, e A peste, do Camus, pela sua metáfora do modo como os seres humanos vivem juntos, e de como se relacionam entre si e com suas mediações. No caso dos dois anteriores a mediação se dava pelo Estado. No caso de Saramago, pela ausência dele, pelo menos no fim do enredo, já que o Estado é responsável por ter atirado os cegos num mundo sem nenhuma adaptação a eles, onde nem mesmo eles, com exceção de dois personagens (o que já era cego e a que não ficou cega), tinham experiência na escuridão. A diferença de Saramago com Camus e Kafka é que no Ensaio sobre a cegueira o Estado também se torna cego, na figura da ministra da saúde.

    O filme homônimo, dirigido por Fernando Meirelles, tem o mérito de manter o mesmo clima do livro de Saramago. Porém, o mais interessante do livro, que é sua narrativa lenta, e as observações do narrador, e, claro, a força da sua linguagem, Meirelles não conseguiu manter. Existem diretores que gostam de mostrar e outros que não gostam. Pode parecer um contra-senso, se falamos de cinema. Mas é nítida a diferença rítmica existente entre a cinematografia de alguns diretores como Tarkovski, Kurosawa, Bergmann e Godard, por exemplo, e a da maioria do cinemão norte-americano, com muito mais cortes do que os outros. Quanto mais corte, menos se vê. Quanto menos se dá a ver, menos se dá a refletir.

    Meirelles optou pelo cinemão, mais chegado à publicidade e ao entretenimento, com uma infinidade de cortes rápidos, e diálogos semelhantes aos cortes, igualmente rápidos. Sem tirar-lhe o mérito de soluções pertinentes a essa linguagem, quase um videoclipe, porque altamente competente, é uma pena que toda a reflexão metafórica do romance tenha se perdido.

    A diferença básica entre filme e livro, é que o romance de Saramago é uma quase-fábula da condição humana, e, a cada página, o autor força o leitor a fechar o livro para pensar, como escreveu Barthes sobre o prazer do texto. O ritmo alucinante do filme apenas prende a atenção e pega pela emoção. Meirelles fez um filme de ação, talvez por exigência do mercado, baseado num livro que é de reflexão, coisa da qual o mercado foge sempre.

Nota: No novo projeto gráfico do Diário Catarinense, a coluna sofreu um corte de mais de 1.000 caracteres. Como eu estava acostumado com o modelo anterior, acabei me passando no assunto, e tive que cortar depois Por isso, talvez, pareça que este texto esteja faltando pedaço. E está mesmo. só depois lembrei que aqui no blogue eu poderia tê-lo postado na íntegra. Mas, perdeu-se no universo digital e n a preguiça macunaímica para reescrevê-lo. De qualquer modo, a essência do que penso sobre essa relação filme/livro está aí. Quem quiser debater mais, é só comentar a postagem. Aquele abraço.

6 comentários:

Anônimo disse...

Fábinho, é uma pena que tenha se perdido o resto de seu artigo, pois acho no mínimo apressado pensar o cinema de Fernando Meirelles - ou seu último filme - algo como cinemão ou cinema americano. Mas posso estar errada ou não ter entendido.
Dá prá explicar?

La Vanu disse...

Sim, explica pra gente...na verdade eu não achei nada de ritmo alucinante no filme, não vi todas essas cores que você falou (achei-o bem cinza até). Concordo que sempre o livro é melhor porque é lido, pensado, digerido porém não vejo onde tenha se perdido a metáfora da cegueira humana no filme. Mas essa é só a opinião de uma apreciadora e não de uma fazedora...capaz que a gente vendo de fora, sem entender de cinema, vê diferente...
Abraços

Daniel Olivetto disse...

Confesso que não gosto muito de comparar livro e filme já a fruição é muito diferente pra cada linguagem, mas é quase impossível não comparar as duas coisas vez por outra, em especial quando a literatura já vem com todo esse peso, como é o caso do Saramago.

Acho que o filme me causou reações muito parecidas com as do livro, mas sempre em relação ao peso dos acontecimentos: eu remexia na cadeira, ficava agoniado com a ausência de uma força que pudesse dar fim naquilo tudo, ficava puto, enfim, me envolvia com os acontecimentos, que progridem de uma forma que é impossível ficar alheio. Mas, a discussão do livro e suas metáforas sobre a visão ficam dispersas na opção pelo cinemão, mostrando tudo, me fazendo ter raiva e me envolver com os absurdos da trama, mas a reflexão fica no segundo plano... a liberdade das palavras do Saramago ficam no pano de fundo, e o resultado do filme é quase um filme sobre solidariedade, com direito a alguns momentos quase piegas né? Fiquei achando que por pouco viraria um filme do Shyamalan... mas não chegou a tanto...

Victor da Rosa disse...

A diferença entre Saramago e Kafka é que Saramago vende no aeroporto e Kafka, não, rs.

(Ainda não vi o filme. Estou esperando sair na locadora)

Abraço,

Fábio Brüggemann disse...

Chamo de cinemão toda narrativa fragmentada demais, com muitos cortes, como um video-clipe, do mesmo modo como são feitos os filmes de ação tipo Rambo. O Blindness foi montado dessa forma. Quando li o livro, eu podia fechá-lo, diante de uma frase que me encatasse, e dizer: "puta que os pariu, o cara escreve pra caralho". No filme, se as cenas não fossem tão cortadas, eu poderia olhar mais, sem ter que me preocupar porque logo virá outra cena que não me deixou olhar a anterior, e dizer a mesma coisa. Me irrito com cenas cortadas demais, porque não quer mostrar, não quer dar tempo pra reflexão. Foi isso.

Anônimo disse...

Então vi o filme e concluí que:
Fernando não traiu Fernando, com jamais José trairia José.
E agora?
Um abraço,

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