28 de fevereiro de 2009

Dois parágrafos de números

Mais de um milhão de crianças nascem por semana. De fome, por ano, morrem 40 milhões de pessoas, mas são produzidos 356 quilos de cereais para cada ser humano. Em favelas, nos arredores das grandes cidades do mundo, moram aproximadamente 600 milhões de pessoas. Trezentas mil crianças, incluindo meninas, são usadas como soldados, sendo que a maioria tem menos de 10 anos de idade. Num desastre causado por fatores climáticos, o número de mortos em países em desenvolvimento é 47 vezes maior do que em países desenvolvidos. Porém, uma das maiores causas deste tipo de fenômeno é o consumo desenfreado de recursos naturais e não renováveis, porque 20% das pessoas que vivem nos países mais ricos consomem 60% da produção de energia comercializada no planeta e porque as emissões de CO2 produzidas pelas atividades humanas são responsáveis por mais de 60% do aumento do efeito estufa. Este consumo é quase que totalizado pelos países desenvolvidos.

Metade de todas as pessoas do mundo vive com menos de US$ 2 por dia, U$ 60 por mês, um salário mínimo e meio, aproximadamente, por ano. Uma em cada cinco crianças não vai à escola. A indústria alimentar gasta 40 bilhões de dólares por ano em publicidade. A maioria dos governos gasta mais em propaganda do que investe em cultura. A água insalubre provoca cinco milhões de mortes por ano. Apenas 300 pessoas possuem mais ativos financeiros do que os 47 países mais pobres do mundo. De cada 100 pessoas, 40 sofrem de grave escassez de água. Por ano, 500 mil crianças ficam cegas por falta de vitamina A. Um em cada cinco adultos no mundo não sabe ler ou escrever. Destes, 90% vivem em países em desenvolvimento e dois em cada três são mulheres. Duas espécies de animais desaparecem por semana no mundo inteiro. Não têm eletricidade 40% da população mundial. Uma em cada três crianças com menos de cinco anos sofre de subnutrição. De cada 10 pessoas, nove nunca fizeram uma chamada telefônica. O total de despesa com atividades militares no mundo chega a US$ 794 bilhões no ano, porém, a ajuda pública ao desenvolvimento totaliza apenas US$ 58 bilhões. Não podemos muito contra estes números, a não ser, talvez, se quiséssemos mesmo, o fato de deixar de achar que sejam apenas números.

21 de fevereiro de 2009

Na boca! na boca!

Boa parte da apologia ao carnaval na poesia brasileira está nos versos de Manuel Bandeira. Tanta, que até mesmo um de seus livros chama-se “Carnaval”. Olhando bem para as fotografias do Manu (como Mário de Andrade o chamava na correspondência entre eles) não parece que o bardo fosse chegado num reinado de momo.

Mas o carnaval da época do Bandeira era diferente do de hoje, talvez seja por isso. Os sambas eram escritos por poetas, e o compositor não fazia concessão, nem rimas esdrúxulas. Hoje, o cara mistura o antigo Egito com a panela, e enche o samba de adjetivos. Dá lhe “esplendor” e “realeza”. Tudo padronizado para entreter milhões na televisão. Tenho profunda admiração pela paciência destas pessoas que nunca foram ao Rio de Janeiro, mas torcem pela Mangueira, por exemplo. Fico me perguntando que identidade, que sensação, que proximidade é esta que eu não consigo ter?

Mas existem grandes sambas de carnaval. “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, roubada do perdido hino da República é belíssimo. Jamelão cantando “Tem xinxim no acarajé” também é genial. Algumas coisas, quando a criatividade acaba, deveriam acabar junto. Se não conseguem mais compor sambas legais, para que desfilar? Fecha um ano a escola, dois, sei lá, mas essa obrigação anual acabou com a beleza do samba. Aliás, qualquer obrigação acaba com qualquer coisa bacana.

Ainda bem que no carnaval podemos reler os versos do Bandeira. E eu imagino, como ele, sentir a tristeza toda daquelas cantigas, sempre por uma “dor daquilo que não se pode dizer”. Eu queria mesmo era ser como o rapaz desvairado, que parava na frente das mulheres bonitas pedindo que esguichassem lança-perfume em sua boca. Ele dizia: “Na boca, na boca”. Como sempre, mesmo fora do carnaval, algumas dão as costas. Outras, porém, fazem as suas vontades. “Ainda existem mulheres bastante puras para fazer vontade aos viciados”, escreveu Manuel Bandeira.

Se uma delas fosse capaz de me ouvir agora, eu queria apenas pedir-lhe, como disse o poeta: “Na boca! Na boca!”.

14 de fevereiro de 2009

Existirá aquela araucária? Quem cortou e colou a fotografia? Aquele durex: que mãos?


Mil palavras

Apesar da frase feita avisar que uma imagem vale por mil palavras, as duas linguagens são tão distintas, que uma não substituirá a outra, tanto em seu significante (o óbvio) quanto no seu significado. Para a sustentação da tese de que uma imagem vale por mil palavras é preciso usar de palavra. De que maneira, com imagem, conseguiríamos? Mesmo que alguém, ao mostrar uma imagem, implicitamente queria dizer que não necessita de palavras, ela ainda terá tanta conotação, que será bem difícil o receptor da mensagem entender o que ela queria ou quis dizer.

Por que necessitamos tanto reter uma imagem num papel, numa tela, na parede da casa? Mesmo antes da invenção da fotografia, desde os primeiros rabiscos pré-históricos, sempre houve gente querendo “fixar” a realidade de algum modo. Mas a realidade é “infixável”, porque a própria fixidez é momentânea, disse Octávio Paz.

Talvez seja por isto que a arte (principalmente esta que quer ser fixada, a imagem), tenha tanta importância no imaginário coletivo. Ela não é vida, mas é um sinal dela, evidência, pegada, vestígio de que existiu alguma coisa, um objeto, uma pessoa, uma montanha ou uma araucária e, o mais importante, o de que alguém idealizou e deu forma àquele objeto a que chamamos imagem. Ela é tão complexa que mesmo “fixa” podemos ver seu movimento.

O que nos leva a desejar o que não nos pertence? Por que quero saber o que não está impresso na fotografia? As frases das meninas correndo numa hora feliz, o banco de ferro onde o casal sentou em Barcelona na foto de Robert Capa, a blusa de lã listrada na única fotografia tirada naquela sacada, o rosto escondido atrás dos braços e o pescoço visto de lado e mal iluminado. O que pensava? O que sentia enquanto sorria para a fotografia? Por que parece tão múltipla e tão inexistente ao mesmo tempo?

A vida é assim mesmo, como disse Roland Barthes, feita a golpes de pequenas solidões. Talvez por isso eu carregue esta impressão (em ambos os sentidos) de que me restou apenas uma fotografia. Quem sabe nela resida este vestígio de mil palavras que um dia significaram “sim”, mas que a imagem hoje insiste em me dizer “não”.

Diário Catarinense, 14 de fevereiro de 2009.

7 de fevereiro de 2009


Alguns motivos para amar Desterro

O pôr-do-sol em Santo Antônio de Lisboa, na calçada onde supostamente a princesa Isabel passou, levantando o vestido comprido, da escadinha de onde observávamos a vida passar, eu, mais Joca, mais Chico, mais Fifo.

Aquela árvore na Beira-Mar, quase em frente à Polícia Federal, e as prováveis baleias que nunca vi.

As infinitas vistas que tenho da janela lateral. Ainda que o Morro do Céu pareça sempre o mesmo, as cores transmutam a paisagem a cada segundo. Minha janela é meu filme.

Porque tenho um milhão de amigos, e pela certeza de que sempre encontrarei alguém com quem conversar na rua, a qualquer hora.

A prainha à direita da Praia do Forte, porque aquela da esquerda é frequentada por pessoas que colocam o carro na areia e abrem o porta-malas com o som mais cafona possível. Penso: por que os que ouvem música alta não tocam Chet Baker? A cafonice é proporcional à ignorância e à violência.

A cabeceira insular da Ponte e aquela pracinha art-dèco preservada no seu tempo, no seu próprio abandono.

O aterro da Baía Sul, com seu garajão de ônibus, seus camelódromos, suas esquizofrênicas arquiteturas, seu merdário que chega a ser poético pela sua patética existência, e porque é uma prova de que os políticos e construtores decididamente odeiam a cidade.

As fotografias dos anos 50, porque provam que um dia houve Desterro.

A memória do Lugar Comum, minha melhor formação.

O silêncio do Centro nos feriados e domingos, e os sabiás que insistem em entrar pela janela lateral.

As mulheres mais bonitas do mundo, em quantidade, variedade, e porque elas andam de ônibus, trabalham nos caixas de supermercados, nos balcões das lojas, na feira, e mandam beijos suaves e azuis.

A indisfarçável breguice que seus habitantes encarnam.

Passar sob a Ponte Hercílio Luz, na parte continental, e imaginar quais histórias guardam aquele casarão quase caindo.

Ver uma ponte da outra e imaginar que, apesar de não parecer, vivo numa ilha.

O camarão à milanesa no canal da Barra; os livros usados do Lima na frente da Catedral; a beleza oculta dos pretos; a igreja da Nossa Senhora do Rosário; a livraria do Daniel; a comida honesta do Alcindo e o simpático mau-humor do Beto; a dobradinha do bar do Paulinho, onde encontro o Olsen todas as quartas-feiras; os que frequentam o Blues Velvet.

A certeza de que cada um dos meus 10 leitores terá sua lista íntima e pessoal da sua Desterro.


Diário Catarinense, 7 de fevereiro de 2009

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...