29 de agosto de 2009

O cheiro das coisas

Coisas, pessoas, épocas, lugares, roupas, fatos, situações, tudo isso tem cheiro. O cheiro que as coisas têm é a máquina do tempo, mas com rumo apenas na direção do passado. Comecei a fumar aos 14 anos, em uma época que por esta idade os meninos já eram mais homens do que são hoje. Aos 11, eu pegava ônibus sozinho, com dinheiro no bolso e contas para pagar, numa cidade que já era metrópole em 1973. E eu lembro bem do cheiro de Curitiba, do cheiro da fumaça da oficina mecânica da Marechal Deodoro, onde, na hora do lanche, comíamos sanduíche de pão d’água com mortadela e tomávamos coca-cola de garrafinha. Não tomo mais coca-cola, mas basta sentir o cheiro, que é como se eu me transportasse para aquela oficina, naquela cidade.

A fumaça, até uns 11 anos atrás, quando deixei de fumar cigarros, durante muito tempo ocultou de mim estes cheiros. Quando abandonei o cigarro, voltei a Lages, onde nasci, e senti o cheiro da minha infância. O cheiro sempre esteve lá, meu nariz é que estava encoberto pelo odor da nicotina.

Alguns cheiros, mesmo sem cigarros, se perderam para sempre. Por mais que o cheiro do bebê da Ana e do Lui, a doce e temporona Júlia, e o cheiro de quando minha afilhada Dandara era bebê, e já é quase adolescente, sejam apenas cheiro de bebê, nenhum era igual ao cheiro do meu bebê.

O cheiro da cerveja escura que lembra café e chocolate, do brandy no inverno, da fumaça da chaminé do forno à lenha da pizzaria aqui ao lado, que anuncia todos os dias o cheiro da lenha; o cheiro do tabaco, do café quente, dos livros assim que chegam da gráfica, mas também o cheiro da biblioteca e seu pouco de mofo; o cheiro da mata quase extinta; o cheiro de um casaco de lã abandonado, o cheiro de um molho pesto no talharim fresco que acabo de fazer e comer; o cheiro de uma Ilha coberta por aterros por causa do cheiro do dinheiro, que atrai tanta gente; o cheiro do churrasquinho de gato dos jogos de domingo do Internacional de Lages, onde, sem dinheiro para o ingresso, pulávamos o baixo muro. Se palavra tivesse cheiro, a que se pareceria o cheiro da espera? O cheiro faz lembrar, o cheiro faz esquecer, o cheiro, no final das contas, é o que decide.

Publicado originalmente no Diário Catarinense, 29 de agosto de 2009

22 de agosto de 2009

Entre aqui para ler a resenha do livro Os melhores poemas de Lindolf Bell, publicada hoje no Diário Catarinense. Abaixo, alguns videos para ver o poeta declamando.

Contradições do adeus

Existem vários modos de dizer adeus, além do mais simples deles que é apenas dizer, com as cinco letras: adeus. Este, porém, poucos têm coragem de encarar. Primeiro, deve haver um motivo muito grave para tal. Uma viagem que se pretende para sempre (ainda que isto não exista de fato), um romance interrompido, ou uma ida até a esquina, porque adeus também quer dizer até logo. Ou, como uma garota muito especial me disse um dia, depois que eu lhe disse adeus (contrariando o fato de que são sempre elas que dizem ): “porque sei que os fins não são mais que recomeços”.

As estatísticas do amor, as mesmas ditas por Drummond no Necrológio dos desiludidos do amor – “enquanto as amadas dançarão um samba / bravo, violento, sobre a tumba deles” – mostram que os homens nunca dizem adeus. A despedida, o bota-fora, é sempre prerrogativa feminina. Homens não querem perder, mesmo que ficar seja perder. Talvez seja uma lógica ancestral, atávica, animal. Animais dizem adeus?

A garota, sem querer, criou ao mesmo tempo um paradoxo (o de que as despedidas sempre são recomeços, e, se recomeçam é porque não têm fim) e um novo paradigma (o de que os homens também sabem dizer adeus). Mas não dizem, e quando dizem, logo desdizem. Para que dizer adeus quando não se quer partir?

E quando é preciso dar fim a uma coisa que nunca teve um começo? E quando dizer adeus não significa nada, porque nada existia para que alguém tivesse que dizer adeus? Talvez seja um problema filosófico dos mais importantes hoje, quase como separar-se sem nunca ter estado junto.

Dizer e não dizer não significa nada. Ficar ou dizer adeus, nesse caso, também. Tudo flui, nenhum dia é igual ao outro, mas por que parece ser? Não sei dizer adeus, mesmo que todos os dias pareçam ser o último. Só não sei dizer último em relação ao quê. Tanto pode ser em relação ao último grão de arroz do melhor risoto, quanto pode ser a última mensagem de socorro enviada pelo comandante de um navio que afunda muito devagar. O melhor do adeus é descobrir que nada vai, exatamente do mesmo modo que nada fica.


Diário Catarinense, 22 de agosto de 2009

15 de agosto de 2009

Viver para contá-la

A epígrafe do livro Viver para contar, do colombiano Gabriel García Marquez, anuncia: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. Mesmo que seja algo que preenche a existência, o presente é tão fugaz, que mal conseguimos detectar onde reside. Sabemos o que é, mas não conseguimos segurá-lo, brecá-lo no tempo. O primeiro “A” deste texto já é passado, já está escrito, já foi contado. Ele permanece apenas como a sensação de um presente, mas já era. Somos seres forjados pela memória e pela contradição.

O presente, por mais que seja esse fluir constante, avançando ao futuro, é a única coisa que resta. Pensar demais no futuro é quase como não viver. Se apegar ao passado também. Carpe diem era a senha escrita, e hoje cada vez mais urgente. Mas não existe maneira de perder tempo. Qualquer coisa que façamos, estamos vivendo. Se não do modo como gostaríamos, não é por culpa do tempo. Por que sempre queremos fazer algo que não está ao alcance imediato? Por que “perdemos tempo” tentando fazer coisas para que nos levem àquilo que queremos apenas no futuro?

Escrever, se levarmos a ideia de “perder tempo” a sério, é o ato que mais faz um sujeito perder tempo. Afinal, para escrever, é preciso deixar de viver. Seria o ato de escrever o mesmo que viver? Para escrever é preciso lembrar. Do que me lembro? O que vale a pena lembrar? Por que interessaria ao outro um ínfimo de instante do que vivi? Por que leio tanto sobre os outros? Ler é viver? Se sim, o mundo é apenas uma sensação. Dormir, talvez sonhar, dizia Hamlet. Que diferença há entre o sono e a vigília se muitas vezes o que sonho, dormindo ou acordado, é tão intenso? De uma intensidade tal. que vai quase além de um fato aparentemente vivido.

Sonhei com uma casa de dois andares, duas garagens, um carro que nunca encontrei e uma mulher que expulsava todas as outras assim que chegava. Contradizendo tudo o que sempre disse sobre viver apenas o presente, decido esperar. Não sei até agora o que contar disso, nem como contar. Se esperar também é viver, depois eu me viro para contar.

8 de agosto de 2009

Malabaristas de rua

Existe todo tipo de malabarista na rua. Os por opção, os porque não tem ocupação formal, os que pedem esmola, os que vendem flores, os que vendem jornais, os que carregam bandeira de partido (quase sempre porque precisam) e os que, como eu, adoram estar na rua, não fazer nada na rua., mas, do meu modo, me equilibrando na rua.

A medida da prefeitura de proibir alguém de estar na rua, fazendo o que quer que seja, é um atentado contra as liberdades individuais, e, por consequência, contra a democracia. Se o poder público quer mesmo resolver problemas urbanos, deve pensar primeiro nos problemas sociais. Depois, pensar num modo de criar uma infraestutura urbana na qual o uso do transporte público seja privilegiado em relação ao privado.

Além do mais, proibir um cidadão de se manifestar, seja ele de que forma for, é abrir uma brecha para o poder público proibir qualquer manifestação no futuro. Hoje são os malabaristas, amanhã os pedintes, depois de amanhã, caro cidadão, será sua vez de ser proibido, porque a ideia do poder público é sempre a de jogar para debaixo do tapete os problemas reais. No caso dessa cidade, com certeza, as mazelas urbanas não passam pela presença dos malabaristas nos sinais, mas sim pela crescente violência, pela ocupação irregular dos espaços públicos, pela destruição do patrimônio cultural e natural, enfim, pela falta de educação pública de qualidade.

Além de ser segregacionista, porque não pune outro tipo de manifestação (e os vendedores de flores, os pedintes, os vendedores de jornais, os que oferecem água?), a medida é totalmente inconstitucional, porque fere até a medula o direito de ir e vir de um cidadão, seja ele fazendo malabarismos, seja ele gritando fora Sarney ou seja ele dando vivas (como faço quando posso) ao passe livre.

Sou um malabarista de rua entre a multidão de automóveis e motocicletas, e exijo a imediata ocupação das ruas por pessoas no lugar dos automóveis cada vez mais homicidas. Eles já estão tomando nosso lugar nas calçadas. Nada mais justo que nós, malabaristas, ocupemos o lugar deles nas ruas, para exercermos nosso direito fundamental de viver nessa incrível arte de andar por um fio.

1 de agosto de 2009

Uma garota indignada

Convidado pelos escritores e amigos Salim Miguel e Flávio José Cardozo, escrevi um conto para a coletânea 13 Cascaes, cujo mote deveria ser o folclorista Franklin Cascaes. O livro, publicado pela Fundação homônima, já é um dos mais vendidos, por conta de ter sido indicado para o vestibular da UFSC. Nessa semana, participei, junto com os escritores e também amigos Adolfo Boos Jr. e Olsen Jr., de um debate na Casa da Memória com alunos de terceiro ano de uma escola privada. À certa altura, a conversa girou em torno da enorme sacanagem que estão fazendo com a Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, principalmente em questão ao seu patrimônio histórico.

Acontece que os últimos 20 anos foram desprovidos de dirigentes públicos minimamente atentos no que se refere às políticas públicas para a cultura. Deu no que deu. O aterro do Burle Marx (paisagista que neste mês completaria 100 anos) virou um garajão. Assistimos a prédios e mais prédios históricos, literalmente, serem tombados ao chão, em troca de uma arquitetura de última qualidade. Os apelos para que a cidade tenha um fundo municipal de cultura, editais democráticos, um plano diretor razoável, a nada disso os políticos dão ouvidos. Pelo contrário, o prefeito acha que progresso é fazer viaduto e o governador acredita que cultura, turismo e esporte devem estar na mesma secretaria. Desse modo, sobra confusão, até mesmo por parte de quem concorda.

Por isso, no debate, uma garota ficou decepcionadíssima e indignada porque eu disse que detestava o epíteto Ilha da Magia, atribuído à cidade. Eu disse que com magia ninguém resolve nada, mas sim com razão. Ela atribui a magia à natureza, e não a esse estado metafísico no qual as coisas pretensamente se resolvem com passes de mágica. No fundo, tanto eu quanto ela defendemos a mesma coisa. E eu gostei muito da indignação dela, que deveria se voltar contra as autoridades, porque são elas que se lixam pela preservação deste patrimônio riquíssimo. Em breve, se continuarmos com essa lengalenga e não usarmos a inteligência, viveremos numa cidade como outra qualquer, sem a magia da natureza manifestada pela garota indignada, e com toda a razão.

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...