29 de maio de 2010

QUEM NÃO PULA QUER TARIFA

Acompanhei de perto pelo menos uma das inúmeras manifestações que estudantes estão fazendo, desde que os preços das passagens aumentaram na Ilha. A primeira impressão que tive, claro, foi lembrar-me das tantas passeatas que participei quando era estudante. A segunda foi pensar no motivo pelo qual apenas estudantes estavam na passeata. A terceira foi perceber que tem muito, mas muito mesmo, policial na Ilha. Ao contrário da sensação de segurança que seria normal ter diante de tantos homens e mulheres armados, tive foi é muito medo. Ôpa, alguma coisa aqui está errada, porque se eu pago bastante imposto para ter segurança, e quando me deparo com a sua represetnação fico com medo, é sinal de que a ordem das coisas está mudando.

Na verdade – volto às leituras de Michel Foucault e Max Weber, dos que me lembro agora –, não há nenhuma novidade nisso. Só mesmo um incauto não entenderia que o aparato policial, ideologicamente, não foi criado para dar segurança aos que o sustentam, mas, pelo contrário, para dar segurança ao próprio Estado, principalmente contra aqueles que o contestam. Se a polícia existisse mesmo para nos dar segurança ela daria, estaria nas ruas, teria postos policiais em cada esquina de cada bairro (e não é mais desculpa dizer que não tem contingente, porque eu vi), mas não tem. Ela aparece apenas quando o Estado sente-se ameaçado, quando o Estado não tem mais inteligência para argumentar, e quando ele nos rouba, seja em tarifaços, seja ajudando empresas amigas, seja superfaturando obras, seja, enfim, nos sacaneando nas multas de trânsito ou nos altos salários dos políticos e cargos comissionados.

Mais de quatro mil pessoas gritavam “quem não pula quer tarifa”, pedindo para que a população (afinal, só estudante pega ônibus?) descesse dos prédios e engrossasse a passeata. Mas adultos são medrosos, preferem ser vilipendiados pelo Estado a dar a cara numa passeata, prefere ficar em casa assistindo novela a não reclamar da falta de policiais quando mais precisa, porque quando seu carro é roubado, quando sua casa é roubada, quando matam seu parente, ainda colocam a culpa no ladrão. Mas os ladrões de verdade estão protegidos pela lei que eles mesmos criaram e ainda têm a polícia para protegê-los de nós, cujo pecado, aos olhos do Estado, é apenas querer uma cidade um pouquinho melhor e mais humana.

22 de maio de 2010

Foto de cena da peça Prenome Fausto, montada no começo dos anos 90, escrita por mim e dirigida por Nando Moraes. Sylvio Montavani, à direita, é Fausto, e Édio Nunes, à esquerda, é a Barbárie. Naquela época, Fausto vence o embate. Se alguém quiser encenar hoje, autorizo apenas com a condição de que a Barbárie vença, para, quem sabe, reinventar o teatro naturalista. A foto é de Renato Gama.


Cultura e barbárie

É cada vez mais tênue, ou talvez tenha sempre sido, o fio que separa o pacifismo da barbárie. Desde a forma como o Estado lida com seus cidadãos (onde a violência é presente, seja na tortura explícita, seja na sua ausência) até na relação quase sempre desconfiada, mais prosaica, com o vizinho, a violência é uma condição humana. O que a contém é um “tipo” de cultura, que, na falta de um nome melhor por enquanto, chamamos de “cultura da paz”.

Cultura não é apenas um tipo de ação, não é o cara que faz teatro ou literatura. Isso é manifestação artística, ainda que também seja cultura. Quando defendo quase de forma quixotesca que a principal ação de um Estado (e por isso é essencial uma pasta que cuide exclusivamente desse assunto) tem que se dar no âmbito da cultura, significa que é todo o resto é cultura. A forma como o Estado trata a saúde pública, e de como o cidadão não consegue cobrar do Estado uma ação minimamente eficiente nessa área, tem a ver, antes de mais nada, com a cultura.

Como não existem políticas públicas para a educação, por exemplo – nem o cidadão cobra, nem o Estado faz questão de ter – em poucos anos, desde que a Ditadura Militar acabou com o País, impondo políticas de idiotização da população, temos uma geração incapaz sequer de compreender a diferença entre estado e governo. E isso é um tipo de violência.

Há um abismo que se abre, e ele é cada vez maior, quando tanto Estado quanto população compreende “cultura” somo se fosse perfumaria. Essa incompreensão conceitual é o caminho mais fácil para a barbárie, que talvez seja, no fundo, o que todos queiram. Talvez a barbárie seja uma parte da essência humana, a qual, poucas pessoas, lutam contra ela. É como se fosse um furacão empurrando uma porta, muito maior que nossa capacidade física tem de segurá-lo.

A barbárie sempre esteve (e está) bem próxima. Instalada, cada vez mais, nos gabinetes dos governos, nos tribunais, na mídia, na escola, no trânsito, é uma enorme, crescente, e cada vez mais assustadora onda, cuja educação e a arte, infelizmente, não conseguiram, e talvez nunca consigam, barrar.

Publicado originalmente no Diário Catarinense, 22 de maio de 2010.

15 de maio de 2010

O que é público no transporte?

Na Ilha de Nossa Senhora dos Aterros não existe transporte público, porque o modo como funciona não se dá com o propósito do bem público, mas sim do privado. Portanto, o tal Sistema Desintegrado de Transporte é bem burro, porque as pessoas (e vamos parar de chamá-las de usuários), hoje, levam mais tempo para se locomover de um ponto a outro do que antes da sua criação e o do inchaço urbano.

O que a população – inclusive a que acredita que o automóvel resolve todos os problemas de locomação – e o poder público têm que pensar é que esse grave problema urbano só será resolvido quando se levar a sério a ideia de que transporte para ser público não pode ser privado.

A lógica do privado é uma só: dar lucro. Mas não é lucro para a comunidade, para o público, mas sim para o empresário, para o privado. E se o empresário se lixar para o caso de ter que colocar mais ônibus pra sanar os problemas e ajudar as pessoas a ir com mais tranquilidade de um lugar pra outro? Na lógica do público, a ideia de lucro não passa pela grana, mas por inúmeros outros fatores fundamentais pra vida em comunidade, que é ar menos poluído, menos violência no trânsito, menos tempo de locomoção, menos acidentes, mais sociabilidade, etc.

O lucro do transporte público tem que ser social, não econômico. Sendo assim, ele não pode ser privado, mas público de verdade. E como se daria isso? Simples, todos, mesmo os que andam aparentemente tranquilos nos seus automóveis – achando que não sofrem com o péssimo sistema – deve arcar com o transporte público. Ele não daria lucro, no sentido mais ortodoxo, mas faria um bem enorme para todo mundo, inclusive os que não abrem mão do suposto conforto do automóvel.

O que não dá é para suportar uma das tarifas mais caras do País, ou esse caos cada vez maior no trânsito e ainda chamar isso de transporte público. O subsídio faria um bem enorme, porque se o sistema funcionasse, se ninguém precisasse ficar mais do que cinco minutos aguardando um ônibus, muito mais gente usaria o transporte coletivo, teria menos automóveis nas ruas, menos estresse e menos violência. Quer lucro maior do que esse?

8 de maio de 2010

Fora, pavão

O pavão é um bicho esquisito. Quero dizer, é feio mesmo. Não entendo por qual motivo alguém resolveu criar o adjetivo “pavonear” para falar de pessoas que gostam de aparecer. Para parecer um pavão? Sei não.

Mas conta uma das fábulas de Estopo (sic), um filósofo latão (sim, destes que vivem na lata de lixo, como viveu Diógenes, o cínico), que o pavão queria ser o rei da floresta. Mas como não tinha porte de leão – o rei forjado a urros, garras e dentes –, teve que fazer uma aliança. Seus aliados (os do pavão, é claro) concordaram que ele fosse coadjuvante de um reinado estranho, porque multifacetado, cuja única plataforma era criar cargos públicos em regiões afastadas do centro do reino, e, assim, além de empregar amigos, gastar uma grana federal do reino. Consta que toda grana que o reino arrecadava deveria ser usada para melhorar a educação, a saúde, a segurança pública, a cultura e a infraestrutura pública dos outros animais que pagavam impostos.

Porém, o rei não sabia o que era política pública. Ele era apenas um agregador astuto, mais raposa do que leão até. De cultura, nada entendia. Mesmo com toda a bicharada saindo em passeata, pedindo fundos, editais, transparências, o leão nunca quis ouvir esses bichos. O rei era tão iletrado, que achava que cultura, turismo e esporte eram a mesma coisa. Mas qualquer um, até o ingênuo coelho, sabe que uma coisa nada tem a ver com a outra.

Depois de muito tempo no poder, o rei quis fazer outra coisa na vida, outro cargo público, talvez. E é claro, o plano do pavão deu certo. De vice-rei, virou rei. O rei pavão I. Acontece que antes desse fato, O Diário da Selva publicou gravações nas quais o pavão, apesar de não ser macaco, foi pego com a boca na botija, recebendo uma grana para safar uma empresa privada de um processo público. Mas tem uma lei bem esquisita no reino, que proíbe que o próprio rei seja processado. Nem juízes corujas, nem os outros animais que pagam impostos, se importaram com isso. Se eu fosse um fabulista daquela época, ao invés da palavra fim, escreveria em letras grandes, apesar de parecer um ato bastante solitário num reino cada vez mais estranho: “FORA, PAVÃO”.

Publicado originalmente no Diário Catarinense, 8 de maio de 2010

1 de maio de 2010

Meninos também escrevem diários

Quando fui garoto, acreditava que os meninos que gostavam de música e poesia eram maricas. E mais ainda os que gostavam de dançar. Ninguém usava os termos gay, homossexual, viado ou bicha. Era maricas mesmo. E eu não queria ser um maricas. É engraçado, mas apesar da feminização do sujeito, o artigo era masculino: “um”, sim, “um maricas”. Mas eu gostava mesmo era de jogar futebol, coisa de menino. Por sorte, hoje tem meninas, como a Graziela Meyer, que gostam de futebol.

Mas um dia, comecei a ler romances, depois livros de poemas, e, enfim, ouvi Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento, e comecei a gostar de música. Mas peraí, como assim? Eu gostava, gosto, de mulheres, do cheiro delas, do pescoço, daquele osso que aparece nos quadris quando elas são magrelas (daí meu gosto pelas magrelas, talvez), enfim, eu descobri, ouvindo música e lendo poemas, que os meninos gostam mesmo é de contrariar. E eu contrariei. Tanto, que logo logo, mais do que gostar de música, de ler poemas, de gostar de teatro, aquele garoto que fui também começou a fazer tudo isso, a despeito do que os machistinhas e preconceituosos pensavam.

Pra usar um brinco na orelha esquerda, como protesto por uma ditadura que poucos ao meu redor reconheciam como sendo, foi um pulo. E, é claro, a cidade não coube mais em mim. E no dia em que eu fui-me embora eu nem olhava pra trás. Hoje, acho engraçado dançar. Mãos para um lado, olhos procurando o outro sem disfarce (não tem como disfarçar, porque só se dança se for para alguém), pés tentando encontrar um ritmo que o satisfaça, enfim, não danço nada, apesar de saber que se eu soubesse dançar teria todas as mulheres do mundo aos meus pés.

Mas eu nem quero todas as mulheres do mundo. Nem caberiam numa agenda, e eu não tenho tantos ouvidos assim, para tanta boca falando neles. Eu quero apenas aquela que não se importa pelo fato de eu não saber dançar, mas que gosta quando eu seguro a sua mão enquanto ela dança. Sim, aquele garoto, que nasceu tão cedo, tão antes, pertence a um mundo talvez bem estranho à maioria que não lê poesia e ainda acredita em deuses. Aquele garoto continua lendo, se acha o último romântico, sabe pouca coisa do mundo, apesar de desconfiar de muita, e ainda é amigo de muitos maricas. Só não dança, né, que aí já é demais.

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...