31 de julho de 2010

Refletir ainda é perigoso

Estou lendo – não sem algum atraso – porque foi publicado no começo dos anos de 1980, a autobiografia de Luis Buñuel, Meu último suspiro, um dos cineastas mais geniais e transgressores que o século passado já viu. Revi, por conta da leitura, e estão na íntegra na internet, O cão andaluz e a Idade do ouro. Uma das cenas mais tocantes e grandiosas deste último é um plano fixo de alguns cardeais da Igreja Católica (instituição odiada por Buñuel e grande parte dos surrealistas) rezando à beira de um precipício e transformados em esqueletos. Isso ainda nos anos 1920.

O que mais me fez pensar, tanto relendo a livro quanto revendo o filme, passados quase 90 anos, foi o quanto ignoramos todo esse pensamento contra o medievalismo irracional das religiões, do modelo de estado conservador, do quanto se guarda ainda como sendo dadivosa a moral escravagista do trabalho, o culto ao consumo, e, o pior de tudo, a um conservadorismo que me dá medo, porque ainda está no ar um ideal explosivo contra a liberdade, como o próprio Buñuel refletiu no seu também genial O fantasma da liberdade.

Pergunto-me, depois de tanto livro escrito contra a barbárie, onde foi parar esse ideário? Por que ainda tem gente que acredita que uma ditadura é melhor que a liberdade de expressão? Por que ainda existem pessoas que desejam tanto a pena de morte? Por que ainda há os que se importam tanto com o que o outro pensa ou diz, principalmente quando é contrário à sua crença irracional?

Talvez essa insensatez tenha uma presença tão assustadora justamente porque a maioria nunca viu um filme de Buñuel. Talvez explique também o motivo pelo qual prefeitos e governadores retrógrados, sustentados por eleitores iguais, odeiem tanto a palavra cultura, porque esta faz pensar. E refletir, ao contrário do que possamos imaginar, ainda é perigoso.

Publicado originalmente no Diário Catarinense, 31 de julho de 2010

24 de julho de 2010

Presente sem licitação?

Sinceramente, não sei o que fere mais o sentido de democracia, se a corrupção generalizada, ou se a frase da arquiteta Cristina Maria da Silveira Piazza, ao dizer que “quando é presente para a cidade não precisa de licitação”. Sim, ela disse isso, depois de ter sido exonerada (não sem tempo, pois desde o ano passado os funcionários do Ipuf já reclamavam do escândalo) por estar em duas pontas de um processo de restauro do casarão da Câmara e Cadeia do Município. Uma como funcionária pública, outra como membro da Ong responsável pelo restauro, que levaria 10% dos R$ 25 milhões.

Mas, pensando bem, é bastante comum, em Santa Catarina, esse tipo de comportamento. Há algum tempo, um sobrinho de um secretário do Estado também levou pouco mais de um milhão de reais para fazer um filme sem precisar participar de um edital público, como todos os outros produtores fazem anualmente. Será que ele levou a grana só porque era sobrinho do secretário? Será que a arquiteta também está nas duas pontas do processo só porque é sobrinha do ex-governador Luiz Henrique da Silveira? O leitor acha mesmo que é perseguição política denunciar esse real nepotismo? E nunca é demais lembrar que os dois casos levam literalmente ao nepotismo, já que “nepto” significa, em latim, sobrinho.

Em qualquer democracia decente, na qual população e poder público têm real consciência do que cada um tem de direito e dever, em hipótese alguma alguém deveria ocupar um cargo público, ainda mais comissionado, por ser parente do funcionário eleito. Mas aqui, na Santa e Brega Catarina, Estado onde habita uma das elites mais daninhas do País, isso pode.

Só espero que o contrato seja anulado (isso, sim, um grande presente para a cidade) e seja designada uma equipe de técnicos, de preferência sem ligação política partidária com o governo, para que uma nova licitação seja feita. Aí sim a cidade será presenteada, mas de forma legal e ética.

17 de julho de 2010

Proposições para um debate

1) Acho estranho a priori qualquer tipo de casamento, porque ninguém tem que dar satisfação de sua vida amorosa, nem à igreja nem ao estado. Logo, independentemente se o casal é ou não homossexual, não seria a proposta nascida de uma discussão que nunca existiu antes, que seria a ideia pública de casamento?

2) O argumento da união, pelo menos civil, entre pessoas do mesmo sexo de que o casamento universal concede direitos ao cônjuge também precisa de um debate a priori, que é o direito de herança. Para isso, existem há muito tempo os contratos, nos quais qualquer pessoa, de qualquer sexo, podem fazer qualquer tipo de acordo público sobre o destino de seus bens.

3) O direito de herança é uma das grandes pragas de uma sociedade. No resumo, premiam-se herdeiros com grandes fortunas apenas por serem filhos ou parentes. Toda herança não poderia ser pública? Incluiria ainda o direito autoral, pois, afinal, quem mal ganha com sua obra é o artista, não seus herdeiros. Aliás, uma parcela enorme de herdeiros mais atrapalha a divulgação da obra de seus ascendentes do que ajuda.

4) Pode parecer absurdo, mas uma parcela razoável e bem desinformada da população, que acredita ainda na revista Veja, critica os programas de distribuição de renda do atual governo federal. Mas não consegue enxergar que existe um grande programa de concentração de renda na mão de poucos, baseados no modelo arcaico de herança.

5) Falo da enorme fortuna que o estado paga, ou seja, que nós pagamos mensalmente, para viúvas de desembargadores, filhas de militares, governadores, ministros e toda sorte de sugadores de dinheiro público que nada fizeram para o país, a não ser suportar seus discursos medíocres. Mas quem se indigna contra essa enorme bolsa família, que nem mesmo para movimentar a economia do país serve, porque é concentradora de renda e gasta, geralmente, em outros países?

Publicado no Diário Catarinense, 17 de julho de 2010.

3 de julho de 2010

Tanta gente, tão pouco tempo

Não lembro exatamente quando nem onde e nem quem escreveu (coisa que nem deveria dizer, vão falar por aí), li uma frase que até hoje me persegue: “tanta gente, tão pouco tempo”. E isso aconteceu quando a população era, no mínimo, metade da de hoje, numa cidade provinciana e que sequer pensava no significado futuro da expressão “explosão demográfica”.

A frase me tomava de susto, e ainda toma, porque a ideia de felicidade não parecia estanque. Quer dizer, eu nunca seria feliz totalmente. No máximo, seria feliz momentaneamente, porque era impossível abraçar o mundo, conhecer todas as cidades, amar todas as pessoas, entrar em cada edifício que eu julgasse merecedor de uma visita, ler todos os livros, compreender todas as línguas, enfim, meu “eu” cabia num espaço reduzido de desejo.

A opção menos cruel, disso me lembro, era não ser assim tão grandiloquente nos desejos, até porque, recordo de ter sido muitas vezes bem feliz apenas sentindo o sol na pele. A outra decisão, talvez apenas de aparência sensata, seria sempre (sim, e reitero, sempre) querer apenas o que poderia me pertencer, e isto incluía recusar a todo custo o que se convenciona chamar de “desejo coletivo”. Algo que está no ar, que é fabricado, que há tempo deixou de ser humano no que se refere ao desejo pelo acúmulo, porque penso que não é da natureza humana acumular, ainda que essa mesma fábrica de alucinação coletiva indique o contrário.

Se eu fosse Ludwig Wittgenstein e escrevesse um tratado lógico filosófico talvez tivesse imitado Caetano Veloso, quando cantou: “Onde queres dinheiro sou paixão”. Mas o feito, o tecido, o cozido no caldeirão insuspeitado da crença nas pátrias, nas religiões, nas associações de ajuda mútua, nas altas cortes, essa gosma não me pertence, essa meleca não quero pra mim, por mais que abarque tanta gente e tantos outros “quereres”. Ainda me basto com uma grama verde, o sol na pele, e minha mão no ventre da namorada.

Diário Catarinense, 3 de julho de 2010

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...