24 de dezembro de 2010

Memórias das coisas abandonadas

No Natal de 1970, ganhei um carrinho azul de ferro, uma espécie de jipe. Era pequeno, tinha até molas, mas era grande praquele garoto ainda pequeno. A infância é feita de coisas gigantes, e que na medida em que crescemos vão se reduzindo. Das coisas aos sentimentos, das descobertas enormes às minúsculas decepções. Eu fazia estradas no chão batido, e elas foram, sem palavra escrita, minhas primeiras histórias. Muitos amigos imaginários pegaram carona no automóvel azul. E não sei onde foi parar. Não lembro se escondi, se presenteei, se esqueci, ou se apenas abandonei, trocado por coisa de mais interesse. Criança é assim mesmo. Quer muito, depois enjoa.

No Natal de 1972, ganhei um brinquedo muito maluco. Era um macaco. A gente esticava um arame de uma parede a outra e ele deslizava, como se tivesse vida, num movimento idêntico ao de um malabarista. Aquele símio foi minha primeira lição de equilíbrio nas cordas. Depois disso, tudo o que fiz até hoje foi pensando em equilibrar-me em alguma corda, para ir de um lado a outro. Seja de uma parede, seja de uma cidade, seja de casa à esquina.

No Natal de 1991, o primeiro em que minha filha sabia falar, ela pediu um fusca azul e duas espadas. De onde veio esse desejo não tenho a menor ideia. Mas comprei um fusca de brinquedo e duas espadas de plástico no camelô. Durante muito tempo os objetos (sim, estranhos para uma menina) foram mudando de casa, de bairro, de caixa, até desaparecerem. Por que o azul do jipe e o do fusca? Simbólicas coincidências natalinas? Onde foram parar? Em algum anel de saturno, junto com todas as coisas perdidas? Talvez as coisas nunca se percam, sejam apenas esquecidas, porque perdem sua função (principalmente, e talvez a mais importante) simbólica.

Aproveito para desejar um ano batuta a todos os que ainda insistem em ler há oito anos esse pequeno pedaço de jornal, aos sábados, e dizer que estarei de férias a partir da próxima semana, até o mês de fevereiro, período em que a coluna será assinada interinamente por outro autor.

Diário Catarinense, 24 de dezembro de 2010

Um comentário:

Anônimo disse...

"pega carona no carro que vem, se ele é azul não importa, fica na tua". o vitor ramil conhece a relação entre nossas vidas e os carros azuis.

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