27 de outubro de 2007

Tropa de Elite

O filme Tropa de Elite, de José Padilha, tem suscitado debates interessantes e de variados matizes, sempre caros à sociedade. O primeiro refere-se ao próprio filme, sua concepção estética, e a velha dicotomia realidade versus ficção. O segundo, sobre o abandono por parte do Estado de uma parcela enorme da população, a mais pobre, que paga impostos sem nem mesmo ter como sonegá-los, como faz grande parte da elite. O terceiro, sobre a violência. Talvez não seja demais dizer - ainda que todos digam reconhecer - que os três temas estão ligados intimamente.

Sobre o primeiro aspecto, o filme, possivelmente, será o de maior bilheteria da história do cinema nacional. Não porque tenha renovado a linguagem, ou porque seja original. Características, aliás, que nunca levaram muita gente ao cinema. Pelo contrário, é muito bem fotografado, com uma história bem contada, e uma forma de filmar do cinemão norte-americano, do qual todos nós fomos bem-educados para compreendê-lo, com seus cortes rápidos, narrativa ágil e sem muita conversa comprida. Mas o que confunde muita gente, e que tem a ver com o cinema e suas idiossincrasias, e muito menos com a chamada "vida real", é a tendência a pautar a vida como se fosse a arte ou vice-versa. É dessa premissa que surge a identificação de grande parte da população que assistiu ao filme com o personagem Nascimento e seus métodos nada legais. E como o filme trata de um assunto caríssimo e insolúvel à sociedade, talvez a única forma de fazê-lo tão popular seja mesmo usar uma forma de filmar já conhecida de todos.

O segundo aspecto é a sensação cada vez maior de que o estado existe para socializar o prejuízo e privatizar o lucro. Com forte teor moral e religioso, ainda que a Constituição afirme sua laicidade, o debate sobre uso ou não de drogas passa, infelizmente, por estas convicções. Um estado laico levaria em conta, em primeiro lugar, o direito do indivíduo de se mutilar da forma como bem entender, e não colocaria na pauta da discussão as carolices de uma sociedade que ainda acredita que usar drogas é caso moral ou de polícia, e não de saúde, como deveria ser tratado. Como afirma Durkheim, em Ética e Sociologia da Moral: "Todas as grandes verdades morais correspondem a verdades econômicas". Só não vê quem não quer.

O terceiro aspecto atinge um ponto crucial da vida coletiva: a generalização da violência. Nesse caso, sem ter que entrar em questões antropológicas e históricas, pelo reduzido espaço, falo da violência ligada ao tráfico de drogas. Por este aspecto, o filme ganha, e muito, porque foge do estereótipo do cinemão, onde é normal a criação de personagens maniqueístas. Em Tropa de Elite não existem figuras boas e más, todos têm culpa no cartório, desde o estado, passando pelo policial corrupto, o traficante sem escrúpulos e violento (mesmo que a Lei de Newton diga que para cada ação existe uma reação), pela elite que usa drogas, alimentando o tráfico, e por nós, cidadãos, que não temos formação suficiente para propor mudanças paradigmáticas radicais. Enfim, um moto-perpétuo social e sem solução. Aliás, o próprio Padilha afirmou que pretendeu apenas mostrar relações de causa e efeito, sem culpar ninguém.

Porém, se o filme pretendeu colocar na berlinda um assunto necessário, e por isso abdicou (de forma inteligente) de uma opção mais antenada com a história das vanguardas cinematográficas, pecou por não dar defesa inteligente às personagens da elite. Toda vez que alguém as culpa por fomentar o comércio de drogas falta um contraponto (se para todas as outras personagens há esse contraponto), que deveria dizer sobre o seu direito de usar drogas, porque, afinal de contas, por que pode fumar cigarro, beber cachaça e não pode usar maconha? Se existem tantos médicos, professores, advogados, jornalistas, deputados, juízes e empresários que fumam maconha e cheiram cocaína, por que seu uso ainda é proibido? Não é hipocrisia social isso?

O velho argumento de que o uso de droga gera violência, ao que parece, já caiu por terra. O que pode ser mais violento do que a atual brutalidade do tráfico e sua repressão? A solução mais inteligente é liberar de vez o uso, como foi feito com o álcool, o cigarro, o automóvel a mais de cem quilômetros por hora, as armas e a burrice. Aliás, a burrice é a grande geradora de violência, e ela está, como a maconha, nas escolas , nos tribunais, nas ruas, e tem cada vez mais viciados. Como diz Tom Zé: "A burrice, todos os dias, do Oiapoque ao Chuí, já é gloriosamente festejada".

Sei que não era propósito do filme tocar no assunto "liberação", e talvez o suscite sutilmente. O filme quis fazer uma biografia do Batalhão de Operações Especiais da PM.

20 de outubro de 2007

Sanguessugas?

Os artistas, produtores e intelectuais de Santa Catarina, individualmente ou reunidos em suas associações e sindicatos, já foram chamados de tudo pelos atuais administradores do Estado. Na gestão anterior, o ex-presidente da Fundação Catarinense de Cultura, o senhor Edson Machado, disse que essa gente que pensa e faz arte, e que reclamava por uma política decente, era um "Grupo Tóxico".

Agora, depois do lançamento de um manifesto contra as atrocidades decretadas pelo governo, na última quinta-feira, aqui no DC, o senhor Gerson Hübner, gestor do Funcultural, chamou todos os cineastas do Estado (já que a Cinemateca assinou o documento), os escritores (já que a União Brasileira de Escritores assinou), os atores, produtores e diretores de teatro (já que a Gesto assinou o documento), os envolvidos com dança (já que que Aprodança assinou o documento) de sanguessugas.

Pergunto, pra não perder a mania, quantos livros ele leu nesse ano, quantas peças de teatro ele foi assistir, quantas vezes freqüentou lugares onde os sanguessugas se reúnem, quantas vezes foi ao cinema? Dos mais de 80 indivíduos e quase 30 associações signatárias do manifesto, ninguém consegue ver uma única obra produzida pelo senhor Gerson ou pelo senhor Knaesel. Mas ainda assim eles são responsáveis por determinar a política pública do atual governo para a cultura. Por que?

Um partido político ou uma coligação quando chega ao poder quase sempre tem problemas no que diz respeito à cultura. Ou seu líder maior, no caso o governador do Estado, tem uma idéia equivocada de investimento público para a área, crendo que aparecer ao lado da Vera Fischer, encher as burras de dinheiro de uma escola de samba carioca, instalar uma escola de balé russa extemporânea, fazer festivais alienígenas ou trazer balés dinamarqueses é a coisa certa a fazer, ou escolhem algum alienígena que não é da área para o cargo.

Carlos Drummond de Andrade já havia alertado há tempos sobre a incapacidade de convivência harmômica entre intelectuais e o poder. Sendo assim, os partidos quase nunca têm quadros capazes de compreender a importância da área e as necessidades de seus produtores. Se soubessem, a primeira coisa a fazer seria ouvir, como se ouve a necessidade do agricultor, do médico, dos professores e de todos que fazem parte da sociedade civil organizada. Mas não é assim que acontece, e não é por acaso que o manifesto, amplamente representativo, foi escrito.

Outro problema é ter que fatiar uma secretaria com outro partido, no caso o PSDB, que administra um fundo que só não foi barrado ainda pela Assembléia Legislativa e pelo Ministério Público ninguém sabe ainda o motivo, tamanhas as incongruências de seus decretos e portarias assinados todos os dias, e sempre para pior.

E quem sofre com essa disputa interna entre o que pensa o governador e o que pensa seu secretário de esporte, turismo e cultura? Os escritores (é importante lembrar que a Lei que exige que o Estado adquira obras de autores catarinenses nunca foi cumprida), diretores de filmes (que só têm sido feitos porque uma lei assim exige e tem uma classe atuante e atenta exigindo seu cumprimento), os dramaturgos, atores, músicos, bailarinos, enfim, quem cria e para quem o incentivo deve ser concedido.

Eu já havia prometido nunca mais encher a paciência do leitor com esse tipo de crítica, até porque imaginei ter esgotado todo repertório. Mas o governo é campeão em conceder subsídios para as reclamações. Haja paciência para suportar tanta desfaçatez e ignorância. Ou a sociedade acorda para o que está acontecendo e exige uma política democrática, justa, amplamente debatida entre todos, e se construa, junto com o poder legislativo, e o judiciário um Fundo de verdade de financiamento à cultura, ou o Estado continuará vendo seus produtores tendo que mudar de profissão. O próximo sindicato a ser criado será possivelmente o dos trabalhadores em grupos tóxicos, de sanguessugas profissionais e assemelhados de Santa Catarina.

14 de outubro de 2007

Salve o Cine Marrocos

Talvez não signifique muito ao leitor a notícia da venda de mais um cinema de calçada. Afinal, foram tantas as salas fechadas nos últimos anos, a maioria ocupada agora por igrejas cujo lema é "templo é dinheiro", que o anúncio da venda do Cine Marrocos, em Lages, parece já fazer parte da destruição gradual da "cultura da rua". Depois do homo sapiens, conforme avisa o poeta Vinícius Alves, apareceu o homo xópings. Assim, caminhamos para o ar-condicionado e o falso ascetismo dos templos de dinheiro, que anunciam, sim, salas e salas de cinema (ainda que minúsculas), mas que se limitam a exibir cada vez mais do mesmo.

Do mesmo modo como devo parte de minha formação ao Cine Clube Nossa Senhora do Desterro e à abnegação de Gilberto Gerlach em trazer mostras de diretores que jamais seriam exibidos nos cinemas comerciais, devo outra parte, não só intelectual mas também social, ao Cine Marrocos. Intelectual, porque compreendi, a partir daquelas poltronas modernistas (como todas as linhas de sua arquitetura, da fachada à sala de estar) a diferença entre o cinema de entretenimento e o cinema de autor. Optei pelo último como espectador, e hoje não creio no mero entretenimento, porque o mais tolo dos filmes sempre serve a uma ideologia, mesmo que disfarçado de emoções e risos baratos. Mas isso é conversa para outro sábado. Social, porque ir ao Marrocos era muito mais do que ver um filme. O mote mesmo era ver gente. E nesse propósito, o Marrocos lotava todos os domingos à noite, independentemente dos filmes que exibia, mas quando prestávamos atenção aos filmes, sempre ganhávamos algo mais.

Nas poltronas do Marrocos vi o Último Tango em Paris, conheci o humor inglês do Monthy Phyton e sua hilária versão da vida de um certo Brian. Foi após a sessão de Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, que tive a primeira epifania, quando o amigo Bottini comentou o diálogo de um dos soldados da barca, extraída da emblemática novela de Joseph Conrad, Coração das Trevas, quando, chapado daquele cigarro que passarinho não fuma, diz que não dormiria nunca mais, pois fosse na vigília ou fosse no sono, a imagem do horror da guerra nunca mais sairia de sua cabeça.

Confesso um pieguismo ao falar do fim de uma sala de cinema depois do Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore. Mas deveríamos compreender nesse processo até onde o espaço privado deixa de sê-lo para se transformar em espaço público, e o quanto é fundamental a preservação do que é patrimônio público, por mais que pareça privado. É compreensível que o dono do Marrocos tenha prejuízo pela ausência de público, e por isso precise vendê-lo. Há um choque cultural enorme entre o direito de vender um patrimônio que é seu, e o direito público que é a memória daquele espaço. O patrimônio pode ser do senhor Mário Santos, mas a fachada pertence aos olhos do público, porque sempre que alguém passar por ali terá a sensação de que viveu experiências, interessantes ou não, emocionantes ou não. Do mesmo modo, a memória de todos os casais que trocaram beijos naquele escurinho pertence a todos. Nesses casos, só o poder público pode intervir, do mesmo modo como fez quando da quase venda de outro emblemático cinema lageano, o Marajoara. Hoje, graças a intervenção do poder público, o Marajoara é um teatro municipal. Por que não fazer o mesmo com o Marrocos?

Mas meus conterrâneos, por desconhecerem que um imóvel privado é de alguma forma público, e por levarem a sério a idéia de que devemos abandonar tudo o que é velho (problema, aliás universal) largaram o Marrocos ao azar do discurso das almas, e passaram a freqüentar pequenos cinemas nos centros de compras ou alugam filmes nas locadoras para não sair mais de casa. Detecto no ar uma conspiração capital para a destruição da memória humana, para que mais uma vez se possa errar tudo de novo e construir o já construído. Mas é do erro repetido de onde mais se extrai dinheiro fácil.

8 de outubro de 2007

Pedágio e outras cobranças incabíveis

Para justificar minha ojeriza absoluta aos pedágios, quaisquer que sejam, terei que, antes, explicar minha talvez idiossincrática visão sobre o papel do Estado na vida de cada um de nós. Como ainda uma minoria da população - apesar das insistentes investidas sobre esse assunto nessa crônica coluna - crê que o Estado pode tudo, não compreendendo que ele nada mais é do que um grande condomínio onde quem dá as cartas é a maioria, vivemos essa espécie de endeusamento do poder, e mais, numa bajulação aos governos, como se eles durassem para sempre.

Insisto sobre a durabilidade do Estado acima da efemeridade dos governos. Mas para isso, é preciso que os cidadãos tenham consciência de que para que o Estado subsista aos governos, é preciso primeiro saber que tipo de relação cada cidadão quer ter com o outro. Sem isso, a vida em sociedade se transforma nessa mesquinharia, onde não há planejamento, porque cada um pensa que terá sua última chance de tirar uma casquinha da grande máquina, riquíssima, porém sempre mal administrada (por causa dos governos de circunstância), chamada Estado.

Portanto, toda e qualquer posição sobre que tipo de Estado queremos só pode funcionar se for ideológica, apartidária (até porque os partidos brasileiros já perderam suas identidades e suas plataformas faz tempo), ou, no resumo da ópera, pensada não de forma circunstancial, mas sim com vistas à formação de uma nação, como são, por exemplo, a despeito de gostarmos ou não, os Estados Unidos. Lá, o Estado é sempre mais importante que os governos. Se a liberdade de expressão, por exemplo, é assunto constitucional, não há governo que a derrube, apesar de querer muito, como o de George Bush.

Sobre a cobrança dos pedágios, por exemplo, já ouvi gente dizer que, pelo fato de o Estado não ter dinheiro, a "única solução" é passar pra iniciativa privada. Mas isso só leva ao enfraquecimento não apenas institucional do Estado, mas da obrigação que os governos têm de investir essencialmente naquilo para o qual foram eleitos. Além do mais, é uma falácia essa história de não ter dinheiro. Pelo contrário, o Estado brasileiro é riquíssimo, tanto um deputado se dá ao luxo de receber por mês um salário imoral para o restante da população. Isso é pobreza? Existem milhões de pensões imorais sendo pagas, invertendo toda lógica da vida em sociedade, que deveria ser: quem tem mais distribui para quem tem menos. Mas no Brasil, os pobres pagaram impostos compulsórios, ICMs, IR, IPI, IPMF, etc., etc. para alimentar as gordas pensões, os antiéticos salários, para gastar com obras que nunca se concretizam, e com coisas que sequer imaginamos, porque nesse enorme condomínio chamado Brasil, ninguém presta contas, até porque não há quem as cobre.

Portanto, quem se posiciona a favor dos pedágios ignora sua condição de cidadão, e ainda por cima apóia vários crimes, a começar pela bitributação (já existem outras taxas sobre os automóveis: IPVA, Licenciamento, Seguro Obrigatório, etc.), porque é seqüestro (afinal, alguém te extorque para você ser libertado), e porque é omissão. Além do mais, existe dinheiro, sim, para manutenção de estradas. O que falta é vontade política dos governos para investir naquilo para o qual o Estado existe: saúde, educação, segurança pública, cultura, justiça e também na manutenção de sua estrutura viária.

A continuarmos assim, com essa omissão total dos Estados na nossa vida, delegando toda função coletiva à iniciativa privada, não haverá sentido algum pagarmos impostos. Seria bem mais inteligente reunir a comunidade, fazer "uma vaquinha", e cuidar pessoalmente daquilo que pagamos ao Estado para que faça por nós.

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...