17 de novembro de 2007

Tudo sobre minha mãe

Dona Rosa nasceu em Perimbó, em 1939, no mesmo ano em que um único homem, chamado Adolf, com a anuência de um povo arrasado por uma economia de salve-se quem puder, decide matar judeus, artistas, negros e qualquer outro ser humano que ele considerasse "anormal". A data tão próxima me assusta, porque ouço conversas baixas nas ruas, de gente, como Adolf, ainda crente que humanos são divididos entre "certos" e "errados".

Sonho como Kafka nos telhados de Praga, imaginando ser arrastado por processos dos quais, ou desconheço, ou os considero insanos, escondendo-me de balas e palavras perdidas, disparadas por essa gente que "limparia" o mundo dos "impuros", em nome de uma certeza que extraem das igrejas, de uma parte da mídia e de reclames avisando a todo instante que você só é "bacana" se tiver dinheiro pra comprar alguma coisa, mesmo que não precise dela.

Dona Rosa sobreviveu à guerra e aos 17 anos pensa que poderia namorar um primo-irmão. Como os parentes não aprovaram a idéia, e obediente como devem ser os cordeiros de Deus, casou com outro rapaz, muito mais alto que a maioria, de bigode ralo, e que carregava madeiras para a construção da futura capital do país. Dirigia um novinho em folha FNM, sigla, para ele, não da Fábrica Nacional de Motores, menina dos olhos de Juscelino, mas de Feliz Natal Manoel.

Por causa da mesma política de privilegiar automóveis e asfalto, em detrimento das estradas de ferro, bem mais seguras e não-poluentes, mas que não foram prioridade "nesse país", o recém-marido de Dona Rosa morreu atropelado por um "potente" Volkswagen, numa distante cidade chamada Palmas, no Estado de São Paulo, bem próximo do Natal de 1961, apenas onze meses depois do casamento.

Na barriga, dona Rosa trazia esse escriba que vos enche a paciência nesse canto do DC todos os sábados, e que nasceu em 1962. Onze anos depois não havia mais Hitler, mas uma ditadura tão estúpida e igualmente apoiada quanto a dele. Apesar de dona Rosa sobreviver à sua pequena tragédia pessoal, e desconhecendo o processo histórico no qual estava (apenas por viver) submersa, casou-se com outro homem. Este, por desconhecê-lo, e também por nunca ter dito a palavra pai como se fosse minha, acabei por chamá-lo assim durante os últimos 30 anos.

Dona Rosa, depois de tanto o filho encher sua cívica paciência, votou pela primeira vez em Lula, a despeito de seu marido, que havia ajudado a eleger os dois Fernandos anteriores, Collor e Cardozo. Só agora penso que, mais do que por despeito de Lula ter sido um trabalhador igual a ele, o fato de se chamar também Fernando pode ter contribuído para a escolha. Dona Rosa, porém, dizendo que sua vida de aposentada havia melhorado, e muito, e por ter um coração mais do que de mãe, porque sua válvula mitral é de metal (mas ela já se acostumou com o barulho), votou em Lula novamente.

Em 2008, quanto completou 68 anos, aquele primo distante, agora viúvo, proibido na época por causa da crença de que filhos de parentes nascem com rabo de porco, volta a encontrar dona Rosa. Eles excursionam a Aparecida do Norte, e ele a pede em casamento, não sem uma relutância típica das mulheres, que insistem com a mania em dizer "não" quando mais querem dizer "sim". E quando as palavras finalmente adquirem sua real carga semântica, ela aceita dizendo "sim", e vai viver com ele em Curitibanos, centro do Estado, lá onde alguns sonham que seja a capital.

A história de dona Rosa, cruzando inexoravelmente com a minha, não nos redime de nenhuma responsabilidade histórica só porque é pessoal. Pelo contrário, por sua dedicação à honestidade a qualquer custo, é meu fortificante para praguejar e lutar contra palavras e balas perdidas que tentem eliminar seres humanos por causa da cor, da crença, do sexo, de suas idéias, e das escolhas pessoais, enfim.

Ah, sim, consta que os dois vivem felizes para sempre.

Um comentário:

Rodrigo garcia Lopes disse...

Fala, Fábio,

Visitei seu blog, e linquei no Estúdio realidade
www.estudiorealidade.blogspot.com

Um abraço

Rodrigo

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