23 de fevereiro de 2008

Governo de uma nota só

O governador Luiz Henrique da Silveira tem uma nota só no seu piano. Réu de um processo que se arrasta desde 2006, apresenta um único argumento de defesa: o de que saiu do cargo do mandato anterior para disputar as eleições. Nas entrevistas que concedeu, não refutou quaisquer das acusações do relator, limitando-se ao argumento já citado. Com a decisão de anteontem, que fez a ação voltar à estaca zero, para incluir o vice-governador, o governo tem apenas uma vitória processual, mas se transformará num moribundo político, porque não conseguiu contra-argumentar os dois relatórios já apresentados: o do TRE e o do TSE.

O ministro Ari Pargendler, diante do relatório, disse: "Sem sombra de dúvida, foi montado o maior aparato de comunicação já visto em Santa Catarina com um único fim: alavancar a candidatura a reeleição do então governador Luiz Henrique da Silveira, isso tudo à custa do erário". Resta perguntar: quem pagará pelos estragos de anos ocupando um cargo de forma considerada (ainda que a posteriori) ilegítima?

E este não é um episódio isolado. É de conhecimento público os vários escândalos da atual administração. Tem o caso Vera Fischer; o escândalo da oficina mecânica à beira de uma estrada que se passava por produtora para beneficiar uma escola de samba do Rio de Janeiro; o escândalo na Secretaria da Fazenda, que culminou na prisão do assessor Aldo Hey Neto; os milhões de reais gastos com publicidade sem licitação; o escândalo do Balé Bolshoi, e todas as confusões arrumadas por causa de um Fundo de Cultura que não é fundo, e que transformou artistas e produtores em arrecadadores de impostos para o próprio governo. A aceitação por parte de alguns (por medo, ignorância ou ainda aproveitamento) não legitima o equívoco em relação ao papel do Estado no fomento à cultura.

Não esquecer ainda a defesa intransigente do governador aos ainda considerados, pela justiça, como suspeitos de compra de licença ambiental da Operação Moeda Verde. O descaso com o meio-ambiente lhe rendeu também o desonroso Prêmio Motosserra, ano passado, concedido pela Fundação SOS Mata Atlântica, por ter lutado ostensivamente contra a criação de unidades de conservação no Estado, que ajudaria a preservar tão importante patrimônio natural brasileiro.

Mesmo que o governo seja inocentado deste e de todos os processos que correm na justiça contra ele, e que continue no cargo até o final do mandato, é inegável o equívoco ideológico de sua administração, e não há quem não comente, ainda que a boca pequena (por um medo atávico típico do Estado), o estilo principesco de governar, o pairar nos helicópteros e o gosto duvidoso por megaeventos. É tão equivocada sua gestão, e passa apenas por suas idiossincrasias, que sequer escondeu sua defesa à eugenia, em artigo publicado no jornal A Notícia, comentado, inclusive, pelo jornal Folha de S.Paulo.

Somente pela criação de mais de 30 secretarias, que consomem tempo e dinheiro do Estado, na tentativa de tirar das prefeituras o papel que é inerente a elas, e o supracitado exemplo da visão estreita e apenas de governo em relação à cultura, já seria caso para um processo por equívoco político. É claro que isto não existe, a não ser nas urnas, e estou aqui tentando apenas fazer uma licença poética para aquilo que nem merece.

Não sou filiado a nenhum partido, não simpatizo com nenhum político, seja de esquerda, direita ou centro, não sou de nenhuma igreja, clube ou sindicato. Não escrevo em nome de alguém mas por sentir na pele essa exorbitância, essa coisa que está, sim, fora da órbita, esse descaso com o bom senso e com as políticas públicas sérias, principalmente às relacionadas à cultura. Com o processo retornando ao começo, e cientes da morosidade da justiça brasileira, teremos mais dois anos de limbo. A justiça não julgou, apenas retardou processualmente o resultado quase óbvio, o qual seria a cassação do diploma, e claro, o enorme prazer que eu teria em dizer: "Prezado ex-governador, seu piano de uma nota só já foi tarde".

16 de fevereiro de 2008

noite grande na guarda do embaú

Carta a uma jovem leitora

Apesar de sua pouca idade, tens uma percepção de mundo de alguém que viveu o suficiente para considerá-lo incompreensível, sem sentido. Na verdade, esqueça. É somente uma firula literária esse modo de começar uma carta. Até porque conheço velhos que ainda têm alguma esperança de que tudo possa mudar. Assim como jovens como você que não acreditam que isso possa acontecer. No resumo da ópera, não é a idade de alguém que lhe confere desesperança, mas a experiência. As coisas mudam, sim, mas quando não estamos mais pensando naquilo que gostaríamos para o qual elas mudassem. Talvez seja por isso que eu goste mais dos desesperados.

Você me pede que eu te diga alguma coisa, mas eu não sei o que dizer, a não ser tudo aquilo que você diz ter lido até agora, e que, confesso, é sempre a mesma coisa. O que posso te informar mais de forma privada além do que digo de forma pública? Que posso dizer além do desprezo que sinto pela paixão sem medida que certos sujeitos têm pela ignorância e poder? Da ojeriza que destila dos meus poros contra qualquer tipo de injustiça? Da tristeza que sinto quando vejo meninos cheirando cola, dormindo na rua? Da impotência enorme que me deixa quase mudo porque nada, absolutamente nada estamos fazendo contra o aumento desmesurado dessa barbárie que nos espreita?

Claro, pequena leitora, que tenho enorme culpa no cartório. Sou preguiçoso, lento, herdeiro de Macunaíma, o que confirma sua origem enviesadamente germânica. Canso-me ao ter que mais uma vez usar argumentos tão óbvios contra falcatruas tão descaradas, de ter que implorar às instituições que apenas vejam o óbvio. O que posso fazer? Você me pede que eu seja mais lírico, como fui outro dia. Mas era caso tão excepcional, que até me envergonho de tê-lo feito.

Não me peças conselhos, pequena. O poeta é um sujeito tão às avessas - ainda que eu não escreva versos há mais de década, sinto como um deles - que Platão expulsaria a todos de sua República. O poeta, pequena, é um erro no código genético da humanidade, como dizia o Paulo Leminski, porque tudo o que ele te dirá é que esqueças frases como "conquistar o mercado", "ser alguém na vida", ou "construir seu futuro", exatamente o contrário do que a maioria peça que você faça. Ele te dirá que você mande às favas os horários, as convenções, os "compromissos inadiáveis da vida", e que apenas sorria mais e que feche os olhos em direção ao sol e o tome de graça, sem pensar em nada, apenas senti-lo.

Portanto, pequena, tudo o que posso dizer daquilo que esperas é que faça ouvidos moucos aos poetas, porque eles só pensam em transformar a sua vida em linguagem, como único sentido da existência. Sei que deponho contra mim mesmo, porque o instrumento com a qual podemos lutar contra essa babaquice toda é a palavra.

Mas a barbárie ronda nossa casa em formas com as quais não imaginamos que possa existir, como falta de imaginação, tomada da coisa pública como se fosse privada, gente exposta na vitrina e balas perdidas. Como o poeta Rilke um dia escreveu a um jovem poeta, a única coisa que posso fazer é desaconselhá-la. E eu sei (como é típico de poetas) que isso é em si uma enorme contradição, mas que posso fazer?

9 de fevereiro de 2008

Pequeno exercício de ficção para jornal

O amor, ela disse (e se não disse ele deve ter pensado) é uma espécie de repetição da história. Ele não entende, mas ouve. Ele sempre ouve. Desde o começo é assim. Ela pergunta, antes mesmo de ver Brigitte Bardot no filme do Godard, se suas pernas são macias e se seu rosto pode ser comparado ao da Ingrid Bergman. Passavam horas, ela perguntando, ele dizendo sim para qualquer das perguntas. Ela fala sem parar sobre as coisas que lê. Ela gosta de ler, e isto pra ele já é mais do que as pernas alisadas com creme e que o rosto nem tão Ingrid. E ela prosseguia: "você me gosta?".

Um dia ele teve dois sonhos. No primeiro viu alguém sair pela janela, no segundo, viu alguém entrar. Quem saiu chorava, quem entrava colocava a cabeça para trás extasiada. Pensou, apesar de não crer em nada disso, que era uma espécie de espírito. Depois descobriu que tanto a que saia quanto a que entrava eram a mesma mulher. As mulheres, ela dizia, muito convicta, como se falasse por todas (inclusive aquelas que amam apenas outras) não se importam quando um homem diga outra coisa que não aquilo que pensa. Elas querem que eles sejam convictos na mentira que contam. Essa convicção custava caro pra ele, porque havia outras coisas nela que faziam dele um sujeito apaixonado.

Não eram suas pernas, nem seu rosto, nem sua idade balzaquiana, nada de sua aparência. Era um jeito interno (se é que existe), de mexer a mão, de fumar o cigarro, de enviar músicas azuis, de escrever sempre em minúsculas, pra evitar o cansaço de apertar a tecla chamada "capslock", ou pra imitar os poetas concretos, sabe-se lá. Mas ele também escrevia assim, e talvez fosse esse detalhe tipográfico que fazia deles um para o outro, ainda que ela não acreditasse nisso, apenas ele.

Ela gostava de chorar, chamava couve de alface, tinha cabelo cor de milho, era mais baixa que ele, pensava em fotografia, gostava de Freud (ele não), de escrever, de pesquisar, tinha as pernas finas até o joelho, depois, até onde ele alcançava a mão, engrossava. Mas por incrível que pareça ele gostava mesmo era das inacessíveis morenas grandes da serra de onde vinha. Ele dizia que as mulheres gostam mais das relações do que dos homens, ela não concordava. Ela queria viver o futuro, ele queria apenas viver.

Mas porque ela dizia que o amor era uma repetição da história? Era um clichê tão grande, que parecia ele mesmo quando ouvia programas ruins na televisão. Sim, ele gostava de ver, ela não. Ela não apreciava sequer macarrão instantâneo, ele sim, apesar de parecer e dizer que não. Ele, enfim, começava a compreender tal metáfora, daquelas que falava sobre mangas, abraços silenciosos e de pouca respiração, e um milhão de possibilidades de ficarem juntos sem ele ter que escoltá-la nas pequenas e nas grandes viagens.

Ela só fala por metáforas, ele é direto. Ela tem um olho preto como jabuticaba e outro azul como o mar grego. Ela é uma deusa grega aos olhos dele. Ele imagina olhos distintos pra mesma pessoa porque ele é cego, como aqueles das janelas da alma, ou como certos escritores portenhos. Ela usa óculos, e eles se atrapalhavam na hora do beijo, porque as hastes se batem como espadas. Eles procuram janelas cada vez maiores. Ele está perdido, ela encontrada. Ele é um erro, ela um acerto. Ela pede que ele não a conheça tão bem, porque mulheres são como trens descarrilhados, ela disse. Ela chama ele de palhaço, e ele ri. Ela, apesar de todas as diferenças, diz que sente saudade, de um jeito meio enviesado, não querendo nunca dizer, nem assumir. Ela diz que mulheres são assim mesmo, misto de incompreensão e mistério, tal e qual os homens.

Ele é pouco, ela é muitas.

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...