27 de junho de 2009

uma borboleta com dois infinitos em são bonifácio.

O homem que vende flores

Tem um homem que vende flores nas sinaleiras. Na verdade, tem bastante gente que faz isso. Mas este é um senhor muito elegante, no que veste e na postura. Deve ter seus 60 e tantos anos. Costumo me enganar nestes cálculos de aparência. Mas sempre que vejo este homem, eu penso que se ele estivesse de terno e gravata, passaria por advogado, ou deputado, ou qualquer atividade destas que exigem tal fatiota. Discordo do Oscar Wilde, quando disse que só pessoas tolas (ou qualquer adjetivo destes) não julgam pelas aparências. Sou mil vezes o Diógenes, que preferiu viver como um cão dentro de uma barrica, do que qualquer destes janotinhas ou senhores engravatados. Quer saber? Eu tenho até medo dessa gente que anda de terno e gravata. Eu sempre penso que eles estão se escondendo, querendo parecer o que não são. Do mesmo modo, morro de medo de mulheres que usam vestidos longos, se equilibrem em seus saltos altos, alisam os cabelos ou têm mais creme que pele.

Mas o homem que vende flores tem uma ternura no seu terno bem surrado, que nem sei de onde vem. Talvez pela salvaguarda do pacote de flores. E ele não fala nada, apenas mostra. Sequer usa um discurso, ou pede uma ajuda. Ele não estudou marketing para vender flores, não usa uma estratégia agressiva de mídia. Nada. Apesar disso, ele é um vendedor de flores profissional. Tem uma honestidade no seu produto, na sua postura, na sua expressão de “tudo bem” diante do meu sinal com a cabeça e as mãos de que não preciso de flores. Enquanto o sinal não fica verde, me pergunto se ele escolheu vender flores. Que outro sonho teria tido esse homem? Ele tem filhos, netos, família, amigos? Veio de onde? Nunca o vi vender uma única rosa. Tenho a impressão de que ele não precisa do negócio, de que está ali apenas porque não tem o que fazer em casa. Seus olhos não são de tristeza, nem de quem pede piedade. Tem uma melancolia, sim, isso ele tem, que faz o barulho da cidade desaparecer.

Sou eu que me apiedo de mim mesmo, porque não tenho flores em casa, nem de plástico, porque eu não saberia cuidar delas, porque não consigo nem mesmo cuidar de mim, porque o sinal abriu, e o homem que vende flores ficou para trás, com aquele silêncio lindo, com uma elegância que eu queria ter, com uma liberdade de quem não precisa de muita coisa, a não ser circular quase anônimo entre os automóveis. E ele nem precisa chorar o tanto que choro cada vez que o vejo vendendo flores.

20 de junho de 2009

Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, 2050

Escrevo a coluna desta semana de dentro do meu automóvel, blindado, naturalmente, porque a violência passou da conta. Por sorte, a tecnologia permite que eu me conecte com meu editor para que ele possa receber este texto ainda hoje, a tempo de fechar o caderno. Faz três dias que estou preso aqui na ponte Luiz Henrique da Silveira. Mania que a gente tem de batizar ponte com nome de ex-governador. Bons tempos em que as pontes se chamavam Ponte da Saudade ou Ponte dos Suspiros.

Apesar de recém-inaugurada, de nada adiantou essa porcaria. Quando ainda era tempo de mudar a mentalidade das pessoas, os prefeitos e governadores, para agradar os empreiteiros que bancavam suas campanhas, e por acreditar que o progresso deveria ser feito de cimento e ferro, e não de cultura, como qualquer criança hoje já sabe, encheram a cidade de prédios, ruas, avenidas, viadutos e, claro, pontes. Nunca vi gostarem tanto assim de pontes.

Não sei o que vai ser de mim. Nem dos outros motoristas que estão nas outras cinco pontes. Dá pra ver daqui apenas o caos. Tudo parado. Mas ainda assim tem imbecil buzinando. Buzinar pra quê? De que vai adiantar? Recebi uma mensagem pelo celular, de um amigo que está no Campeche. Ele disse que a fila está lá na SC-413, a moderna e já esburacada avenida, com oito pistas, que passa onde antes eram as dunas, e que liga o Pântano do Sul ao Rio Vermelho. Ninguém consegue mover um milímetro. Tem gente que não vê a família faz uns cinco dias já. Dos cinco milhões da habitantes, três estão morando dentro dos automóveis.

Eu aqui já fiz vários amigos. Só não morri de fome porque tem uns camaradas que vêm a pé, por cima dos carros mesmo, trazer comida. Criou-se uma pequena indústria de servidores de pizzas e cachorros quentes, que moram no complexo de favelas Ângela Amin, que circunda as doze cabeceiras das seis pontes. Mas não sei até quando terei dinheiro. Sei de gente que já está trocando biscoito por volantes, pneus e até os bancos traseiros dos carros. Se bem que não sei do que estou reclamando. O prefeito Dario Berger, reeleito pela décima segunda vez – enquanto o TSE ainda não consegue julgar a primeira ação do prefeito itinerante –, acaba de anunciar a construção de mais duas pontes.

Sempre fui crítico da transformação da Ilha em concreto armado. Mas vejo daqui deste mar de automóveis, prédios e viadutos o quanto o progresso é lindo, de morrer.

13 de junho de 2009

À moda de Bertolt Brecht

Cafés, os sem cafeína. Carnes, as mal passadas. Pães, os que eu mesmo amasso. Doces, os com pouco açúcar. Governos, os que apenas governam. Políticos, nenhum, porque, segundo o poeta negro norte-americano, e. e. cummings (assim mesmo, em caixa baixa, como ele assinava), por outras palavras, não são humanos. Juízes, os que não se vendem por R$ 2 milhões.

Cidades, as que ainda não têm meninos cheirando cola nas ruas. Bares, os quais eu posso fumar, beber, conversar em paz e encontrar meus amigos. Amigos, os que podemos ficar em silêncio sem que o silêncio nos incomode. Escolas, as que a elite babaca abandonou. Livros, os que usam letra com serifa e não se pretendem cheios de firulas, que têm margens grandes e que cheiram bem.

Regras, as que devem ser quebradas sempre. Leis, uma única, a de que ninguém tem o direito de amedrontar alguém. Trabalho, só os que dão prazer, que não têm horário fixo para cumprir e que remunerem com justiça. Cheiros, o que abrem as gavetas da memória. Mate, os mais amargos. Frios, os secos. Calor, só quando estou próximo ao mar. Mar, todos eles. Poemas, os que não têm tradução. Prosas, as mais poéticas. Filhos, os mais amigos. Fumos, os de baunilha. Paisagem, as planas e altas. Cabelos, os mais curtos. Casas, as mais amplas, ensolaradas, de janelas grandes e com varanda. Conversas, as que dão vontade de apenas ouvir. Artista, o que não faz concessão.

Esperas, as que nunca têm fim, porque alimentam como o pão que não mata a fome. Amores, os impossíveis. Cachimbos, os feitos de brezo. Remédios, os que não preciso tomar. Bebidas, uísque para sair e vinho para ficar em casa. Sucos, os do limão. Chás, os de hortelã com cidreira. Lua, a mais redonda. Rios, os limpos, em que a água corrente faz lembrar o rio de Heráclito. Árvores, a araucária. Futebol, o que jogo às segundas-feiras.

Estradas, as mais vazias. Roupas, as de algodão. Papéis, os mais rugosos. Comidas, as que eu mesmo invento. Flores, as que não temem sua memória genética e que mostram ao homem o que ele não consegue admitir: que têm de morrer pra germinar. Mulheres, as que gostam de medir minha mão na sua.

7 de junho de 2009

La Vanu criou um blogue bem bacana, no qual ela posta respostas de 25 perguntas que fez para algumas pessoas. Para conhecer o blogue 25 perguntas, entra aqui. Para conhecer mais La Vanu, entra aqui.

6 de junho de 2009

As coisas sempre estão longe

As coisas nunca estão por perto quando a gente mais precisa delas. Quero o cortador de unhas, e ele está não sei onde. Preciso da toalha de banho, mas todas estão no cesto de roupas sujas. E aquele disco que deu uma vontade maluca de ouvir, só pra lembrar de alguém que também está longe: no tempo, no espaço? Não encontro. O fone de ouvido, aquela fotografia, a cópia do contrato, os livros. Estes dariam um capítulo inteiro se eu tivesse paciência para escrever um livro que se chamasse “As coisas sempre estão longe”. Procuro, entre as obras de Oswald de Andrade, meu Serafim Ponte Grande. Encontro todos os outros, mas adivinha qual não está lá? Dá certo, às vezes, fingir que estou procurando outro livro. Aí ele aparece.

As pessoas também sempre estão longe. Ando desperdiçando beleza longe das pessoas. E nem gosto de telefone. Se gostasse, poderia ao menos reduzir virtualmente a distância com eles. Mas o telefone também sempre está longe. Além do mais, eles chegaram na minha vida quando eu já era um cara de 18 anos. Não tinha essa de telefonar para avisar o tio que o avô queria que ele fosse lá jogar canastra com ele. A gente atravessava dois bairros, uma avenida de mão dupla no meio, passava na casa dos amigos pra combinar de jogar uma pelada mais tarde, porque ninguém tinha telefone, e dava pessoalmente o recado. As coisas não estavam muito perto desde aquela época, mas a gente não tinha medo de ir ao encontro delas. Se eu gostasse de telefones talvez todas as outras coisas estivessem mais perto. Mas ainda tenho a mania da adolescência de ir sem telefonar antes. Na maioria das vezes, dou com a cara na porta. Mas eu gosto do caminho. Talvez a melhor coisa no fato de as coisas estarem sempre longe é que sempre tem caminho para que possamos ir atrás delas, e, no meio, encontrar outras coisas, outras pessoas.

Já as pessoas, nem sabem o que querem, nem sempre compreendem o que se passa com elas e com os outros. As coisas sempre estão longe, mas elas não escolhem esta condição. Na verdade, nem sei mesmo se as coisas existem. Talvez, a grande ilusão do mundo seja este auto-engano de acreditar nas coisas, nas pessoas, ou nos deuses. Eu desisti de compreender as coisas, porque acabo de descobrir o aparelho de barbear dentro da geladeira. O que ele foi fazer lá, sozinho, com esse frio todo? Se as coisas sempre estão longe, ou as encontramos fora de seu lugar habitual, que dirá as pessoas.

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...