24 de abril de 2010

A hermenêutica da coisa

A elite brasileira beira ao nojo, quase sempre. É iletrada, consumista, acha que a Veja é a maior fonte de verdade do universo, rejeita qualquer dialética, é preguiçosa – no que eu consideraria virtude se não fosse a paradoxal crença na moral do trabalho como transcendência – e, o pior de tudo, adora bajular quem está no poder.

O episódio da desembargadora Rejane Andersen – acusada de usar da prerrogativa do cargo para tentar dissuadir os policiais a liberarem o veículo irregular de seu filho – é bastante revelador, porém, não comum no Brasil que carrega nas costas uma elite com todas as “virtudes” citadas acima. Pior do que a suposta tentativa da magistrada foi a divulgação de uma nota infeliz da Associação dos Magistrados Catarinenses, que só fez piorar o fato.

Primeiro, porque a priori a justiça só pode se manifestar após extenso inquérito e ouvir todas as partes envolvidas num litígio. Mas numa leitura atenta das entrelinhas da nota (coisa que os próprios estudiosos do Direito chamam de hermenêutica) percebe-se que a AMC julgou por antecedência, inocentando um membro de seus pares, apenas ouvindo uma das partes, qual seja, o próprio “relato” da magistrada. A nota ainda confirma que a desembargadora “começa a questionar de maneira educada (...) se havia possibilidade de liberar todos os envolvidos antes da chegada do caminhão-guincho”. Ora, se ela conhece mesmo a lei, como a própria nota avisa, jamais deveria, mesmo que de forma educada, “questionar” a possibilidade da liberação dos envolvidos. Se está irregular, o policial não pode fazer vistas grossas, e, como um deles diz no vídeo, “aí mesmo é que tem que dar o exemplo”.

Mas num Estado onde um governador não pode ser julgado apenas pela condição de estar exercendo o cargo, mesmo com evidências, as quais todos conhecemos, e ainda assim permanece no poder, coisa que AMC nunca divulgou um nota para esclarecer à população o motivo de tal descalabro, não dá para exigir da desembargadora uma atitude que seria a mais digna ao cargo que ela exerce, a de pedir desculpas, e dizer que os juízes, assim como nós, “simples mortais” sujeitos às benesses e rigores da lei, também erram.

Publicado no Diário Catarinense, 24 de abril de 2010.

17 de abril de 2010

AMORES SECRETOS

Ela disse que o encontrou em uma página de receitas, entre um punhado de arroz e um tempero indiano. Disse também que estava cansada dos outros que apenas contavam histórias, e que, talvez, naquele dia, viesse alguém diferente. E veio, não por sua culpa, mas de alguém da desorganização, só que bem depois da desapresentação de uma certa peça de teatro que ele nunca viu e sequer sabe do que se trata.

Ela disse ainda que sua lição sobre o tempo, esse senhor tão bonito, havia lhe comovido. E que só por isso, e não pela receita de arroz, resolveu chamá-lo de um jeito diferente, como nunca ousou chamar ninguém.

Sim, ele foi, chegou perto, mas não disse muita coisa, porque o segredo daquele dia em diante seria esse pequeno silêncio. Mas havia um cheiro, ela disse, um fumo doce, forte, que depois se misturou com a tinta azul que ela usou pra desenhar cores, formas, nomes. Eram dezenas de anos o segredo daquele amor que demorou tanto pra chegar pra ela, pra ele, cada qual com sua medida, cada qual com seu tempo de espera, cada qual com sua ternura que cabe apenas num instante, e que fica, ele disse, no abraço apertado, peito no peito, porque depois vira imaginação.

Ele acreditava que ela havia pedido uma fotografia, mas ele estava enganado. Ela não faria isso. Depois, ele pediu um abraço, e ela, mais que isso, lhe deu um beijo. Claro, sempre em segredo, porque tem um certo tipo de amor que não precisa ser público, que não precisa de testemunhos, que precisa apenas do segredo em si e de um beijo, vários beijos escondidos.

Os amores secretos não têm hora para começar, do mesmo modo que não têm hora para terminar, e só por isso são secretos. Dá para reconhecer um amor desse tipo quando, como disse Roland Barthes, no seu Fragmento do Discurso Amoroso, os pés dos apaixonados são vistos juntos, mesmo que eles estejam distantes. Mas por pouco tempo, porque ele me disse que um dia fará finalmente aquela receita de arroz pra ela, e acordará naquela manhã e lhe dirá “bom dia, meu amor não mais secreto”, enquanto prepara o mate e corta o pão feito na noite anterior, porque ninguém, ele me disse, precisa mais do que isso.

Publicado no Diário Catarinense, 17 de abril de 2010

10 de abril de 2010

Desastres anunciados

Existem dois tipos de homens públicos. O primeiro é aquele que age em prol do bem público. O segundo é aquele que faz apenas o que lhe dará voto. A história do País tem mostrado que o primeiro tipo, infelizmente, não tem vez entre os eleitores. Isso explica porque estamos cercados pelos políticos do segundo tipo. Andamos tão ocupados com o pagamento do plano de saúde, com a falta de leito nos hospitais, em dar um jeito para pagar a mensalidade da escola dos filhos, que nem nos tocamos mais do óbvio. Se votássemos no político do primeiro tipo, seria sinal de que somos bastante inteligentes para perceber que não precisaríamos mais nos preocupar com planos de saúde, pedágios ou escolas privadas.

Mas também somos eleitores do segundo tipo, porque não nos importamos, por exemplo, com o fato que todos os morros, praias, mangues e áreas de preservação ambiental estão sendo ocupados com vistas grossas, quando não convenientemente avalizados por algum vereador, deputado, prefeito ou governador do segundo tipo. Um dia, como está acontecendo com o Rio de Janeiro, como aconteceu com Blumenau, e, mais recente, com Jaraguá do Sul, a casa cai. E a natureza não é a culpada. Desde que a Terra existe, chove, neva, tem terremoto, tem vulcões e tem tsunamis. Não sabemos nem como nem quando isso vai acontecer, mas é possível prevenir os desastres. Mas estamos cercados de políticos do segundo tipo, e a maioria da população votou neles, não resta muito o que fazer, a não ser, daqui a um tempo, chorar e colocar a culpa na natureza, em algum deus, ou no destino.

Há muito que perdemos a noção do que seja política pública. Nos últimos 30 anos, a população da Capital mais do que dobrou, e, pasmem, o número de leitos hospitalares permanece o mesmo. O número de automóveis emplacados cresceu proporcionalmente centenas de vezes mais que a população. Todos os dias novas famílias se instalam nos morros, praias e mangues, sem que o poder público faça alguma coisa, porque está apenas preocupado com alianças, com a manutenção do poder, e em escapar dos processos por corrupção, enfim, menos com você, eleitor do segundo tipo, que sabe muito bem que estamos diante de desastres anunciados, mas não faz nada para evitar.

3 de abril de 2010

Cristianismo e ética

John Lennon disse que o que acabou com Cristo foi o cristianismo. Essa frase dá para levar a qualquer instância de coletivos seguidores, como, por exemplo, o que acabou com Marx foram os marxistas. Claro que há uma diferença abissal. Marx existiu e deixou seus escritos, que até hoje são os melhores ensaios sobre o capitalismo. E o mais inacreditável, é que os capitalistas condenam Marx sem nunca terem lido uma única linha de seu principal teórico. Do mesmo modo, a maioria dos cristãos nunca leu o Novo Testamento, porque se o tivessem lido não seriam do jeito que são.

A diferença é que existe apenas um parágrafo na história sobre a existência de um homem chamado Cristo, no livro do historiador Flavio Josefo, mas não há uma única linha sobre o fato de ele operar milagres. Também não há um único texto escrito por Jesus. Todos os textos que falam da suposta existência dele, e de seus dotes de prestidigitador, foram escritos mais de cem anos depois de sua suposta crucificação. Isso significa que, para o rigor científico que a história deve necessariamente ter, os textos não passam de resultado daquela brincadeira chamada telefone sem fio.

Mesmo assim, Cristo tendo existido ou não, nenhuma diferença faz, porque o cristianismo é muito maior do que ele, infelizmente. O filósofo Sócrates também pode ter sido uma genial invenção de Platão, porque igualmente não deixou nada escrito. Mas o ideal socrático é exemplar do ponto de vista ético, do mesmo jeito que é o ideal cristão, se não fosse o cristianismo. Aliás, muito da filosofia grega, tirando, é claro, o politeísmo, foi copiado pelos cristãos, principalmente o respeito ao próximo, coisa que muitos dos que praticam o cristianismo ignoram.

Eu não sou católico, nem pertenço a qualquer religião, mas tenho uma propensão quase masoquista a dar a outra face, a ser um vagabundo tal e qual os lírios do campo, a querer andar pelos desertos, a amar o próximo como a mim mesmo, a expulsar os vendilhões dos templos (cada vez mais), e a crer que ninguém precisa mais do que um prato de comida e um dia de sol para ser feliz. Enfim, acho que sou cristão, socrático e marxista. Dispenso apenas os milagres, a abstinência sexual e o discurso cada vez mais patético das igrejas, porque distanciados de sua própria e pretensa ética.

Publicado originalmente no Diário Catarinense, 3 de abril de 2010

SOBRE O ÓDIO

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