27 de novembro de 2010

O direito ao uso

Assim como as doenças, o melhor remédio começa a aparecer quando se conhece o problema. No caso da guerra civil travada no Rio de Janeiro entre traficantes e o Estado, todos sabem qual é o problema: o tráfico de algumas drogas proibidas. Digo “algumas”, porque a sociedade, apesar de aparentemente ser bem informada, não se toca que para a uma dúzia de drogas consideradas ilícitas existem duzentas outras que podem ser compradas sem nenhum problema, como o álcool, o cigarro e a maioria dos medicamentos considerados tarjas pretas, produzidos com uma quantidade absurda de drogas, inclusive psicotrópicas e alucinógenas.

Desse modo, cabe a pergunta: por que algumas drogas podem ser vendidas e outras não? Tenho pelo menos duas suspeitas. A primeira é de fundo moral, e inclui a falta de informação, como tudo que se moraliza A segunda é uma questão econômica. Países produtores de canabis e folha de coca, principalmente, seriam mais ricos se pudessem vender livremente seus produtos, o que não convém às grandes potências econômicas.

Portanto, antes de acreditar em campanhas preconceituosas como a de quem consome drogas financia o tráfico, é preciso pensar outras duas questões. O direito ao uso, no caso o direito ao suicídio, porque usar droga é de foro íntimo; e o bom senso, porque, afinal, se pode usar algumas por que não se pode usar todas? O que deve ser criminalizado é a violência por causa do uso de droga, mas não o simples ato de usar, porque a maioria dos consumidores é mais pacífica do que muita gente que considera “bacaninha e limpa”.

Do mesmo modo como a violência ligada à venda ilegal de bebidas nos Estados Unidos nos anos de 1930 só recrudesceu após a liberação da venda de álcool, parece muito óbvio – se usarmos de inteligência para aprender com a história – que a violência geradora desses conflitos também acabe com a liberação do uso de tóxicos, e que possam ser vendidos como as outras drogas consideradas lícitas.

Diário Catarinense, 27 de novembro de 2010

20 de novembro de 2010

A morte do meu pai

Eu nunca tive pai, mas tive três. Do primeiro, o que chamam de “verdadeiro”, “de sangue”, conheço apenas as fotografias e seu túmulo, no qual seu nome se confunde duas vezes com o meu. Do jazigo, algumas lascas de tinta de prata deixam uma ponta para que eu a descasque. Está lá: “saudade da esposa e filho”, o que ele nunca conheceu, porque não olhou para os lados justamente na hora em que passava um automóvel. Morreu aos 28 anos, com sua mulher esperando, de oito meses, um garoto: eu, que nunca tive pai, mas tive três. Sobraram duas questões dessa pequena tragédia familiar: 1) Por que ele sempre parece mais velho que eu na fotografia? Por que ele tinha que morrer sem antes eu olhar bem nos seus olhos e chamá-lo de pai?

O segundo, o que olhei nos olhos, conheci quando eu já era um mocinho de 11 anos e andava sozinho pelas ruas de uma cidade grande. Apesar de não ser o pai “verdadeiro”, “de sangue”, não tive outra opção naquela pequena vida a não ser chamá-lo de pai. Afinal, todos tinham um, por que eu não poderia ter também? E tive, durante quase trinta anos. Sempre às turras, numa teimosia quase folclórica, convivemos, podemos dizer assim, numa harmonia possível, mas nem sempre harmônica. Mas o que esperar mais? Da relação desse pai com minha mãe, ganhei de presente três irmãos e uma irmã, que se fossem irmãos “inteiros”, e não “meio irmãos”, como dizem, talvez não houvesse tanto amor como o que há.

O terceiro, apesar de conhecê-lo desde antes do segundo, morreu na semana passada. Conta a história dessa pequena história que ele poderia ter sido – se o destino, ou qualquer coisa parecida com isso (porque, vá lá, eu não creio em destino) – meu “verdadeiro” pai, porque amou minha mãe a vida inteira, como ele fazia questão de dizer, e esperou ela ficar viúva duas vezes. Agora, três.

A história é mesmo engraçada, é o que posso dizer desse episódio de quase meio século, no qual eu nunca tive pai, mas tive três.

Diário Catarinense, 20 de novembro de 2010

13 de novembro de 2010

A IGNORÂNCIA DO PROGRESSO

Progresso é uma palavra perversa, porque traduz a capacidade que as coisas têm de mudar de estágios, tanto para o bem quanto para o mal. Uma “obra em progresso”, por exemplo, expressa a evolução de um trabalho literário no tempo na medida em que é produzido. Já uma cidade em progresso – devido à ausência de capacidade intelectual de quem as governa (e nem vou pedir desculpas pela generalização) – não leva em conta o conceito de Charles Baudelaire. Progresso, dizia o poeta francês, só existirá quando não houver mais nem um traço do que chamam “pecado original”. Mas talvez seja exigir demais a um político que ele tenha noção conceitual de que progresso não se traduz somente por areia, cimento e cal.
Outro dia, levei mais um dos vários sustos que o progresso encerra. Um dos prédios mais bonitos da cidade, raro exemplar da arquitetura modernista, foi literalmente tombado. O edifício Mussi, ali na rua Nereu Ramos, construído em 1957, era ostentado pelas colunas sinuosas e reveladoras de uma época. Os apartamentos ainda tinham pé direito alto, para não sufocar – ao contrário dos prédios construídos a partir dos anos de 1970 –, e não era alto demais, como convém a uma cidade que não pretende ser ignorante do ponto de vista urbano. Sua demolição é a prova mais cruel de que a Ilha de Nossa Senhora dos Aterros está cada dia mais insuportavelmente feia do ponto de vista arquitetônico.
Para uma cidade que se pretende turística, demolir o passado é como matar a galinha dos ovos de ouro. Não sei onde estudaram estes construtores, mas é certo que não aprenderam que a destruição da memória é a gênese da barbárie, e que o progresso, sem a sua função poética, sem uma reflexão profunda sobre seu conceito, desemboca na violência. Aliás, já vivemos numa das cidades mais violentas do País. E aposto que o abandono da memória tem tudo a ver com isso. Sei que para os construtores isso não tem nada a ver, e que eles apenas vão rir da minha cara. Mas insisto na tese: não seria a permissão da destruição – por parte dos moradores e do poder público – uma demonstração de ignorância igual?

P.S. O texto acima foi enviada por e-mail pelo professor e arquiteto Luiz Eduardo Teixeira.

Diário Catarinense, 13 de novembro de 2010

6 de novembro de 2010

A beleza do relativismo

Apesar de aparentemente antagônicas, ciência e religião tratam da mesma ilusão, ou objeto – para alguns – que é a verdade. A diferença está no modo de tratamento que cada um dispensa. Para a ciência, sem querer generalizar – porque tem muito estudo metafísico autoproclamado científico (e aí começa a se desmontar o mito da verdade) –, quando não há evidências ou provas de algum fato não se deve emitir juízo. Para a religião, ao contrário, a verdade pode ser baseada em hipóteses, lendas, mitos e, claro, na propagação histórica de uma crença.

Antes da invenção do consumismo, era comum a humanidade se perguntar o que era, de onde viera, para onde iria. Hoje, com tanta coisa para consumir, ver, sentir, tocar, pouca gente se questiona sobre a própria existência. Os que insistem em saber recorrem à ciência ou à religião. O cientista que se preza, pelo menos até este sábado, deverá responder: “não sei, ainda não descobrimos”. O religioso, seja de qualquer igreja, dirá que fomos desenhados por algum ente superior, mesmo que não exista evidências, provas ou qualquer outro fato que pessoa embasar sua tese.

Pensei nisso, apesar de ser apenas um início de uma conversa da qual sempre gosto, por conta da leitura do livro Breves notas, do escritor angolano Gonçalo Tavares, recém publicado no Brasil pela editora da UFSC, com apresentação de Júlia Studart. Breves notas é a união de três livros: Breves notas sobre o medo, Breves notas sobre as ligações e Breves notas sobre ciência. Nas notas sobre ciência, Gonçalo resume o que penso quando trata da verdade. Diz ele: “No absoluto nada é verdade. Cada coisa é verdade de acordo com uma certa metodologia. (...) Todas as hipóteses podem ser verdades pois podemos encontrar uma metodologia que as faça verdadeiras”. Do contrário também, ele diz mais adiante. E é isso que os que acreditam em “uma” verdade não conseguem enxergar muitas vezes: a beleza do relativismo.

Diário Catarinense, 6 de novembro de 2010

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...