15 de março de 2020

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de goiás (está por aí na rede, fácil de achar) mandando o povo ir pra casa pra evitar que o coronavirus se espalhe.
ronaldo caiado é um destes conhecidos sujeitos da direita, ligado ao agronegócio e apoiador do mentecapto. a estas alturas, com tudo o que já sabemos, e mesmo com o que já sabíamos, não dá mais pra dissociar o presidente débil e perigoso de quem o apoia.
no começo do seu discurso, ao lado do carro do som, enquanto explica que apoia a besta, o povo ao redor o aplaude. em seguida, quando ele diz que é médico, o povo o apoia e aplaude.
mas tão logo ele começa a explicar que, sendo médico, não pode se irresponsável, e por entender que se trata de uma pandemia, citando os casos no resto do planeta - e que por isto vai decretar o fim da manifestação - começa a ser vaiado.
é mais ou menos, exagerando um pouco, como se uma galera estivesse apoiando deus, e deus aparecesse e dissesse: turma, eu errei, precisamos rever as coisas, e imediatamente começasse a ser vaiado. mas não porque assume que errou, apenas porque a patuleia quer continuar acreditando no que sempre acreditou. tipo: foda-se deus, eu acredito naquele de antes, não neste, que deve estar possuído pelo demônio.
não tenho simpatia nenhuma pelo caiado. apenas penso no quanto essa cena é a que mais explica a insanidade coletiva.
se o mentecapto um dia dizer que a facada aquela foi tudo armação, esse povo vai dizer que não. e não vai reagir porque foi enganado, mas justamente porque quer continuar sendo enganado.
os apoiadores do sujeito são tão doentes, que o que os move não é mais nem o sujeito, é a vontade enorme de manter aquilo que o mentecapto representou desde o começo: o ódio à diferença, à liberdade, à criatividade, à razão, à ciência, à dúvida, à arte, ao conhecimento, ao outro que ele não quer que seja diferente dele, e por isto deve ser exterminado.
esse povo que aparece no vídeo vaiando o governador, mesmo sendo ele médico e orientando, como médico, que ouçam um especialista - mesmo dizendo que apoia o idiota - bem lá no fundo, é capaz até de odiar o presidente, se um dia ele acordar com um mínimo de sanidade mental.
o que move essa gente ruim que se diz do bem é apenas o ódio.
um ódio por não ter coragem de ser livre, e por isto quer exterminar os livres, para não enxergá-los em sua plena liberdade, e não mais sofrer com a liberdade alheia.

17 de outubro de 2018

POR QUE BOLSONARO É FASCISTA?

  • POR QUE BOLSONARO É FASCISTA?
  • A palavra fascismo veio para a língua portuguesa do latim fasces, que significa “feixe”. Na maioria das línguas neolatinas o radical permaneceu. No italiano, ficou como fáscio. No Império Romano, a palavra fasces já era usada para nomear “um feixe de varas amarradas em volta de um machado”. Quem usava o instrumento era o judiciário romano, vejam só, para castigar, e muitas vezes decapitar, cidadãos que não concordavam com o Império.

  • Na Segunda Guerra, Benito Mussolini recuperou a expressão, porque a ideia de feixe, de “todos juntos”, de “temos que pensar todos da mesma forma”, atraiu boa parte da população. Porém, nem todas as pessoas comungam da mesma opinião, nem têm as mesmas práticas, não compactuam das mesmas religiões, enfim, nem concordam igualmente sobre pontos de vista político, econômico, cultural, estético, educacional, sexual etc. O Fascismo não tolera a diversidade.

  • Em alguns debates e artigos, tenho lido e ouvido deturpações sobre o significado de Fascismo. Se considerarmos a ideia de “feixe”, o uso no Império Romano e na Segunda Guerra, é fácil entender que nada tem a ver com opções econômicas, pelo menos não no raso. Mas é óbvio que, no fundo, os modos como governos lidam com as políticas públicas e a economia podem ser também fascistas. Por isso, não considero compreensíveis expressões como “ditadura de direita” ou “ditatura de esquerda”. Não existe esta diferença. Toda ditadura é fascista a priori, porque elimina o outro e o pensamento do outro. Aliás, elimina o outro para que o pensamento do outro se apague. E antes que alguém venha falar sobre Stalin, já adianto, por este conceito, se levado à risca, ele foi tão fascista quanto Hitler.

  • Quando ouvimos as falas do candidato Jair Bolsonaro é bem fácil identificar ideias e comportamentos fascistas. Ele não admite ser contrariado, e acredita, como já disse textualmente, que “no fundo ninguém gosta de homossexual”, o que é uma falácia enorme. O fascista manipula conceitos porque não consegue ter um pensamento dialético. Várias vezes o candidato fala em “proibir” livros, “proibir ideologias”, proibir propostas educacionais que não estejam de acordo com a sua, quando, por exemplo, propõe que os ideiais do educador Paulo Freire sejam banidos. A vontade de proibir denota a falta de convivência harmoniosa com o contraditório.

  • A despeito disso, de gostar ou não do método educacional de Paulo Freire, uma sociedade que não permite a diversidade de pensamento tenderá a se autodestruir. Aliás, um dos princípios da teoria evolucionista diz que a espécie humana só sobreviveu e dominou o planeta (a estas alturas eu complemento com: “que pena”) porque as etnias se misturaram.

  • Quando Bolsonaro afirmou que “fecharia o congresso na mesma hora”, que “mataria inocentes se fosse preciso”, que “a ditadura matou pouca gente”, só denota a marca da violência contra o outro. Uma assembleia é justamente uma reunião de cidadãos que representam (ou deveriam representar) os mais variados anseios de uma sociedade. Quando um candidato se propõe a “fechar” o Congresso, como os militares fizeram após o golpe de 1964, está eliminando o debate, a ideia do adversário, a voz do adversário, na falsa crença de que as opiniões dos discordantes morram também. O que é uma crença totalmente irracional. Portanto, é inútil proibir. Ninguém deixará de amar uma pessoa do mesmo sexo porque um governo não quer. Ninguém deixará de ler alguns livros porque um governo não quer. Ninguém deixará de pensar ou agir de determinado modo porque um governo não quer. Estes pensamentos todos, se forem proibidos no âmbito político, porque no social continuará existindo, ainda que escondido, talvez até se fortaleçam.

  • Todo embate político (não esquecer nunca a ideia de política como o debate sobre a polis, a cidade) necessita do adversário, aquele que versa diferente de você, mas que você pode argumentar contra, jamais destruir. O embate político, mesmo que não seja totalmente consensual, é a convivência pacífica dos contrários e do respeito ao outro. Porém, o Fascismo não tolera o adversário. O fascista só enxerga o outro como sendo inimigo, não como adversário. E para o fascismo, os inimigos devem ser calados e abatidos, até que sobre apenas uma massa amorfa, tediosamente igual, como queria o líder nazista Adolf Hitler, também fascista, se considerarmos tal significado.

  • Para o fascista, já que não existe a ideia de adversário, perder nas urnas é quase uma ofensa. O fascista não suporta perder. Todo fascista é corrupto, porque legitimar ou incentivar o uso corrente dos verbos “matar”, “eliminar”, “proibir”, “estuprar” é também corrupção, porque a palavra, que também vem do latim (corruptio), significa, entre outras acepções, "deterioração", "decomposição", "modificação", "rompimento" e suborno. Ora, quando um candidato faz apologia ao racismo, à misoginia e à violência, também está corrompendo ideais e pressupostos legais de uma sociedade que optou pela diversidade, não pelo “feixe”, não pelo “todo mundo tem que pensar igual” e agir de forma igual.

  • Negar que o candidato carregue e propague ideias fascistas é também uma atitude fascista, porque não racional. Afinal, o que faria o candidato com praticamente a metade da população que pensa o oposto dele? Como o fascista não suporta o contrário, está bem claro, seja no discurso, seja nos atos, que a tendência é eliminar. Primeiro elimina-se pensamento, depois o corpo, caso insista em pensar. O fascista não tolera a razão, por isso usa na sua retórica os arroubos apaixonados, ainda que suas palavras sejam vagas e cujas propostas sejam inviáveis sob o ponto de vista da democracia. Só para lembrar, a democracia não significa a vontade da maioria, como o próprio Bolsonaro já disse, mas sim o respeito da maioria para com as minorias. E aqui, não estou falando de questões econômicas, mas sob o ponto de vista moral, que é de onde sai a retórica do fascista. Não à toa, os primeiros atos do fascismo são sempre proibir livros, filmes, obras de arte e músicas que tenham outra ideia que não a do fascista.

  • Por isto, ainda que eu não concorde com alguns modos de agir do PT, votarei contra o fascismo que nos assombra, porque já sabemos que, com Fernando Haddad, não seremos mortos ou censurados quando precisarmos discordar ou protestar. Afinal, ele é professor e nada de seu discurso ou de suas práticas o desabona sob o ponto de vista deste conceito. A Frente Popular governou 14 anos com o Congresso aberto, participou das eleições aceitando os resultados, permitiu que a Polícia Federal investigasse, deu força ao Ministério Público, estabeleceu as audiências públicas para novas leis (talvez a instância mais democrática de exercício de poder), e sei porque participei de várias. Nem sempre o resultado foi consensual, mas todos eram ouvidos, sem exceção. De todas as que participei, os votos da maioria foram respeitados.

  • Se errou, há provas de que sim, mas sabemos também que houve participação ativa de uma parte do judiciário em conluio com o grande capital para incriminar líderes apenas com indícios, confrontando, no caso de habbeas corpus o artigo 5 da Constituição Federal. 

  • Mas viva a contribuição milionária de todos os erros, como dizia Oswald de Andrade. O que não dá é para aceitar que um candidato banque como moralista sem ter moral, notadamente expressa no seu próprio discurso. Que moral há em apregoar o assassinato? Jair Bolsonaro é intolerante, é um tiozinho tosco, porque conheço alguns assim na família, herdeiros da intolerância religiosa, e traz consigo, pelo ideal fascista que propaga, um perigo enorme para a democracia. Prefiro, neste caso, saber que se precisar ir às ruas ou escrever contra Haddad, eu poderei fazer isso.

  • Do contrário, minha profissão estará extinta, minha voz será apagada e meu corpo talvez desapareça, porque não há exercício dialético e de liberdade num regime fascista.



9 de junho de 2017

CONTRIBUIÇÕES PARA UMA NARRATIVA À HISTÓRIA DO GOLPE

CONTRIBUIÇÕES PARA UMA NARRATIVA À HISTÓRIA DO GOLPE


o processo que acaba de ser julgado no tse foi proposto por aécio neves, assim que soube de sua derrota para dilma roussef. 

segundo ele mesmo, propôs a ação, em nome do psdb, apenas para "encher o saco". 

mas antes de sabermos da intenção, outra declaração, dele ainda, disse que comandaria uma oposição sem tréguas contra dilma, o que de fato aconteceu. não sem antes juntar com a parte podre do pmdb (diga-se cunha e temer). 

só que, antes disto, o psdb, junto com parte do pmdb, crente que talvez nem a ação agora julgada, nem as armações do congresso aludidas por aécio pudessem dar certo, encontrou outro motivo: o impedimento por crime de responsabilidade. a tal pedalada fiscal. por incrível que pareça, nem a oposição sem tréguas, nem a ação julgada hoje foram tão eficazes quanto a ideia de pedalada fiscal. 

talvez, suponho eu, seja pelo fato de que a maioria da população não sabe do que se trata “pedalar fiscalmente”. e mais, que isto possa ser considerado como sendo “crime de responsabilidade”. talvez pouca gente saiba o que é “crime de responsabilidade”.

quanto menos uma população sabe, menos ela pode atuar contra ou a favor. tanto que, nos discursos oficiais e na boca da classe média, se diz que dilma saiu por corrupção e por causa da operação lavajato. o tal “conjunto da obra”, como um deputado destes aí disse. o que não é verdade.

independentemente do processo de impedimento, a ação proposta por aécio e o psdb corria faz dois anos. a justiça é lerda neste país lerdo, todos sabem, tanto pro bem quanto pro mal. talvez ela até seja mais célere quando é pra defender a elite.

acontece que, o golpe (o impedimento da dilma), uma ação conjunta do psdb do aécio e o pmdb do cunha e temer, aconteceu porque, supostamente, dilma teria deixado a pf e o mpf à vontade para investigar todos os crimes de corrupção, inclusive os de seus aliados. 

mais do que isto, a classe empresarial, aliada à mídia majoritária, nunca engoliu o sapo barbudo (como o chamava brizola) do lula, que promoveu, a despeito de seus inúmeros equívocos políticos (notadamente o de ter se aliado ao pp e ao pmdb) extensa reforma de cunho social, inaugurou centenas de cursos superiores e institutos de educação federais, reduziu a pobreza e a consequente desigualdade (que ainda são enormes), promoveu debates nunca antes feitos sobre direito de minorias, deu voz a inúmeros tabus (sobre descriminalização do aborto e do uso de drogas, por exemplo), fez crescer o consumo  de produtos e serviços da classe mais pobre, levantou o debate sobre a regulamentação das ondas públicas de comunicação, enfim, coisas que estão aí na história para qualquer um acessar. do mesmo modo, falhou imensamente em relação àquilo que se esperava do pt: as reformas mais do que essenciais: trabalhista, política, previdenciária, eleitoral, fiscal, agrária e, principalmente a educacional. além, é claro, de todas as suspeitas de corrupção que recaíram sobre inúmeros petistas.

porém, a elite patrimonialista não se interessa por nenhum destes temas. a elite quer mesmo é jamais perder privilégios. tanto que quando falo em reformas, de modo algum é para defender o modo como estas (principalmente a trabalhista, a previdenciária e a educacional) estão sendo feitas. sempre esperei, de um governo comprometido com a maioria (sem jamais esquecer as minorias, coisa que fhc já teria dito que é impossível inclui-las) que tais reformas fossem feitas sob o ponto de vista de uma paridade real do capital com o trabalho, e pelo fim absoluto dos privilégios. não deu certo, e coloco na conta disto o fato de que não se faz reformas includentes com parceiros que pensam o contrário. 

o psdb, nunca esquecemos, foi o partido que perdeu as eleições. mas por conta da tramoia da oposição sem trégua do aécio no congresso, e pelo fato de muitos de seus líderes (serra e aécio principalmente) estarem envolvidos na operação lavajato, seria melhor tirar dilma de qualquer jeito, com impedimento, com ação por campanha supostamente criminosa, ou mesmo com paralisação de projetos do executivo no congresso. mas  o presidencialismo de coalizão não perdoa. como haver coalização quando os interesses não são coesos?

o mais assustador é que o golpe, apesar de ser tão explícito, foi comprado pela classe média (a elite já não está nem aí com legalidades e com comprometimento) e a pequena burguesia justamente por não compreenderem tudo isto. e digo que está explícito porque poderia há uma narrativa bem clara. a gravação da conversa de romero jucá  e machado dizendo que “com a dilma não tem conversa”- aludindo, obviamente, ao fato de ela não impediria a pf de fazer seu trabalho - e que faria acordo com o supremo, com tudo, é só o começo de tudo. 

não esquecer que jucá e machado estão comprometidos até o talo na lava jato, assim como a maioria dos ministros indicados por temer. muitos deles já caíram - seja por trapalhada, seja por corrupção.

portanto, como alguém pode pensar que não se trata de golpe se o presidente interino (sempre vou chamá-lo assim) convida o próprio psdb (o perdedor da eleição) para governar junto? ninguém se toca disso? mas é o que está acontecendo. se o projeto neoliberal do psdb perdeu, como agora está no poder, promovendo justamente reformas neoliberais? obviamente porque tramou um golpe com o vice-presidente para assumir parte do executivo, mesmo tendo perdido a eleição. reverter uma legalidade por uma ilegalidade 
e um modo de golpe. não seria golpe se temer mantivesse a mesma política de inclusão (com todas as críticas que devemos fazer ao que o govero do pt não fez) proposta pelo pt.

mais do que tudo isso, o que sempre esteve em jogo, mais do que a malfadada corrupção, foi o projeto de país que ser quer. a elite, patrimonialista, privilegiada, sempre conseguindo o que quer (inclusive no governo lula), empréstimos no bnds, corrompendo licitações, sonegando impostos, privatizando o que pode, e contrária a qualquer projeto que possa ser gerenciado de forma razoável pelo poder público (se fosse, no caso o brasil, uma república que guarde minimamente o conceito que se conhece como república). 

a esquerda, por sua vez, ou a parte que esteve no poder (sem esquecer que lula sempre foi o mais à direita dentro do pt), nunca soube modernizar-se, sequer na linguagem. usou dos mesmos discursos da elite, da mesma sintaxe, das mesmas palavras de ordem, gesticulou da mesma maneira, usou os mesmos ternos, enfim, compactuou feio, apenas para poder fazer um décimo do que nós, de esquerda, gostaríamos que tivesse sido feito. 

mas não é possível, ao fazer a crítica, abandonar os princípios e os projetos de esquerda, como muita gente fez, tomando partes pelo todo. conheço muita gente que se decepcionou com o governo dilma atribuindo sua própria decepção à ideia de que os governo pt foi mesmo de esquerda. uma coisa é criticar esta ala da esquerda, outra é abandonar princípios minimamente progressistas de esquerda, aceitando as teses da elite, da continuidade de seus privilégios, e começar a sentir pena do empreendedor que não emprega mais porque tem muitos direitos trabalhistas. ora, um dos princípios do direito é regular, propor regras quando uma parte tem mais privilégios do que outras. o direito trabalhista se constituiu a partir de casos terríveis de exploração do capital sobre o trabalho. 

a tese, vendida à exaustão, de que o serviço público é ruim e que sempre será corrupto, é uma das maiores falácias vendidas pela mídia e boa parte dos mal informados e que têm apenas frases feitas como argumento. afinal, quem corrompeu o serviço público não foi o privado? quem abandonou as escolas públicas estaduais e municipais em favor das escolas privadas, para dizer que as públicas não funcionam? não é possível continuarmos a matar o cachorro para acabar com o carrapato. e é esse o argumento não explicitado que as elites propõem. ah, com o serviço público do jeito que está, melhor é privatizar. mas quem corrompeu, pergunto de novo, não foi o privado?

hoje, num placar de 4 a 3, ministros do tribunal eleitoral não cassaram a chama vencedora de 2014. talvez tenha sido o julgamento mais inútil da história dos processos eleitorais (dificilmente desassociados do político). sem que muitos tenham se dado conta, quem venceu esta ação foi dilma roussef. ela era a cabeça de chapa, e ganhou porque, com os processo julgado procedente ela perderia também os direitos políticos.

mas poderemos especular o resto da vida, diante das falas dos ministros, sobre a contradição totalmente exposta que o relator fez de votos passados do presidente da corte, o pra lá de controverso gilmar mendes: se dilma roussef não tivesse sido impedida, se ela continuasse governando, o placar seria o mesmo? 

claro que é especulação, mas como todos já haviam alardeado o placar, sinal de que três dias de julgamento não serviram para nada (porque apesar dos argumentos e contra argumentos, cada ministro já sabia como votar), só nos resta pensar que a chapa, sim, seria cassada, talvez até por um placar nem tão apertado. e o que é pior, alguém, mais cedo ou mais tarde, diria que foi pelo “conjunto da obra”. ou seja, às favas  o processo jurídico, porque o que importa mesmo é deixar tudo como está, com supremo, com tudo.

por fim, continuamos com um presidente interino, o qual todos ouvimos e conhecemos, sejam pelas gravações (com a jbs), sejam pelas contradições (o tal jatinho), seja pela narrativa explícita do golpe (pmdb com psdb), que ficará no poder, salvo uma explosão popular de consciência (a qual não teremos), promovendo as reformas que privilegiarão a elite patrimonialista de sempre, até 2018. 


depois de 2018 ninguém sabe o que será. mas com certeza, restará bem pouco de república para reconstruirmos minimamente os reais interesses difusos e coletivos da nação.

apesar dos supostos arrependidos em terem votado no aécio, poucos ainda admitem, mesmo com todas estas questões postas, que dilma não tenha sido derrubada por um golpe. e isto é o mais triste de tudo, porque quem perdeu foi a democracia, porque, mesmo que ela tenha sido incompetente, e isto é outro debate, no âmbito da economia, não se tira presidente por incompetência, porque não está em lei nenhuma isto.

e mais, acredito também que existe um componente misógino muito grande que ajudou a construiu o golpe. mas isto é assunto pra outra hora. 

ilha de nossa senhora dos aterros, 10 de junho de 2017.


25 de março de 2016

POEMA DO BOM CRISTÃO

POEMA DO BOM CRISTÃO

cristão bom - o autoconsiderado "cidadão de bem" - é aquele que vai à missa dar porrada em arcebispo porque acha que ele é comunista. pode até não concordar com a agressão, mas ainda acredita que o arcebispado não combina com o comunismo.
cristão bom não gosta de ler marx, porque se o lesse, saberia que cristo tem todas as características de um anticapitalista: distribuir o pão, não se interessar por coisas materiais e morrer na cruz por todos, inclusive os não cristãos bons.
cristão bom quer andar armado, apesar de cristo ter dito que daria a outra face ao inimigo.
cristão bom é aquele que, apesar de cristo ter derrubado os capitalistas do templo, não percebe que o capitalismo é excludente por natureza.
cristão bom é aquele que acredita que só é "cidadão de bem" aquele que trabalha oito horas por dia, para os outros enriquecerem. estão de fora os artistas e pensadores. cristo era um pensador.
cristão bom é aquele que esquece que cristo não trabalhava formalmente, e que disse um dia para que olhássemos os lírios do campo e as andorinhas que não precisavam trabalhar.
cristão bom acredita que a pena de morte resolve todos os problemas. afinal, cristo sofreu pena de morte, apesar de ser considerado pelos cristãos bons um inocente.
cristão bom não gosta de perdoar. cristão bom chama o próximo de ladrão mesmo sem ter provas da acusação.
cristão bom não gosta de seu irmão (termo essencialmente cristão) que mora na rua, da sua irmã puta, do seu irmão preto, do seu irmão pobre (apesar de ser, em sua maioria), dos irmãos veados, das irmãs lésbicas, porque acredita que estes não são filhos de deus, contrariando assim o pensamento máximo de cristo, de que todos somos irmãos.
cristão bom não come carne na sexta-feira santa, porque é cristão bom, apesar de comer carne todos os outros 364 dias do ano.
cristão bom subverte a semântica a seu prazer imediato, de acordo com sua própria interpretação da figura mitológica de cristo, revogando, assim, tudo o que cristo tenha dito ou feito.
cristão bom acredita em cristo, mata por cristo, xinga por cristo, discrimina por cristo, exclui por cristo.
cristão bom dorme como um bom cristão, com a consciência tranquila, apenas porque se considera um cristão bom.
cristão bom continua atirando a segunda pedra.
cristão bom é o que se autodenomina "não praticante".
98% da população brasileira respondeu dizendo ser cristão bom, os outros 2% devem ir para o inferno.
cristão bom não acredita em estatísticas que o exclua da lista de cristãos bons. talvez seja por isto que se declara cristão bom, apesar de "não praticante".
cristão bom: eu não sou.

10 de março de 2016

a água suja com o bebê dentro

A água suja com o bebê dentro

O ex-presidente Lula foi citado uma vez na delação do senador Delcídio, na qual o próprio diz que não a fez, que a Procuradoria Geral da República diz que não existe e que o STF sequer homologou. Por conta disso, foi coercitivamente preso e teve que dar explicações ao juiz de Curitiba dentro de um aeroporto.
O candidato derrotado nas últimas eleições, senador Aécio Neves, acaba de ser citado pelo mesmo Delcídio, na mesma delação, além de já ter sido citado por pelo menos outros quatro delatores, na mesma “Operação Lavajato”. Por conta disso, o placar está cinco a um para Aécio, mas não foi levado à força, sequer convidado amigavelmente a depor.
Não acho justo defender Lula atacando Aécio, como muita gente está fazendo, mas para um debate ser justo - e é disto que se trata este texto - não há outro modo de refletir sobre os fatos do que comparar os critérios aplicados pela justiça, principalmente no âmbito desta operação.
Não é por Lula, nem por Aécio ou por qualquer outra ação da justiça cada vez mais injusta, mas por mim e por aqueles que atacam Lula sem conhecimento jurídico, desconhecendo os meandros da operação, sem ter lido a constituição e sem capacidade cognitiva (apenas 8% da população afirmam as estatísticas) para ler até o fim este texto, porque se aceitarmos de agora em diante que a justiça pode “escolher” o delatado a ser investigado, isso pode virar moda, e adeus qualquer confiança na justiça, tanto para mim como para qualquer um de nós no país.
Portanto, está em jogo a justiça para todos, tanto aos que acham que o Lula deve ser preso quanto aos que acham que Aécio, Cunha ou qualquer outro possa também ser preso sem os devidos procedimentos legais, como aconteceu durante a ditadura.
Um dos argumentos que sempre uso contra a pena de morte, além do horror e da barbárie que ela representa (mas são adjetivos inválidos para os incautos, eu sei) é que ela valeria para todos, inclusive aos inocentes que um dia a defenderam. A história tem provas cabais de mortos inocentes.
O juiz de Curitiba tem, ou teve, vários processos contra ele já julgados, tanto no STF quanto na Corregedoria do CNJ. Houve indícios - desconsiderados, porém com declarações fortes contra o mesmo - de que suas sentenças, num caso específico, principalmente sobre um habeas corpus, eram, vamos dizer assim, “suspeitas”.  E isto é público, basta consultar no sítio do STF e do CNJ.
Não consegui confirmar se as notícias de que o pai e a mulher do tal juiz são membros do PSDB, como dizem por aí. Mas há uma foto (comprovadíssima como verdadeira, porque, sim, devemos duvidar de tudo nas redes sociais) do mesmo juiz num encontro público com o pré-candidato a prefeitura de São Paulo, Jorge Dória. De que partido? PSDB.
Sair às ruas para defender o impedimento de Dilma é meio que “pagar um micão” de tolo numa hora destas. Primeiro, porque não há nenhum inquérito contra ela. Existem indícios, que é mais ou menos como fofoca. Mas no universo da política partidária, indiciar, que tem a mesma raiz que nos deu "apontar o dedo" (que se chama "indicador") é a coisa mais fácil do mundo. Basta apontar e dizer: “ela roubou” e pronto. Em um estado de direito que preserve o direito de defesa de um cidadão, qualquer um, para afirmar que alguém roubou você tem que primeiro provar. Tanto é que existe o “flagrante”, para que nenhum inimigo seu fique te acusando, ou te apontando, por coisas que você não fez.
É óbvio que as apurações da Lavajato devem continuar. Mas julgar sem ver não é mesmo coisa de cristão ou de católico, nem mesmo de qualquer um que diga crer em qualquer deus. E como tenho percebido, os valores “cristãos” de honestidade, dar a outra face, não usar a violência, não têm nenhuma importância para aqueles que usam destes mesmos preceitos na hora de tentar tirar uma presidenta legitimamente eleita, mesmo que não exista sequer uma linha de acusação contra ela. Há indícios,  como já disse, mas há também contra FHC, muito mais contra Aécio e muito mais gente que não tolera ter perdido as eleições nas urnas.
Dilma tem feito coisas das quais não considero como certas, e não votei nela para isto, é certo. Mas falo por mim, não por ninguém. Não gosto da Kátia Abreu (porque ela defende as ideologias do capital), não gostava do ex-ministro da fazenda (pelos mesmos motivos). Nunca gostei da aproximação do PT com essa rapaziada “de sempre”. Este foi o grande erro do partido, pra tentar governar e aplicar os programas que acreditavam serem justos, os quais eu acredito até hoje. Quem tem mais de 20 anos de idade sabe muito bem do que estou falando. Quem se alia com o inimigo não governa um país, governa crises com o inimigo.
O movimento popular mais legítimo não poderia jamais ser por causa deste ou daquele político (ainda que eu tenha preambulado por uma parcialidade da justiça, que hoje não existe), mas por uma mudança radical no sistema político, que tenha em foco, principalmente, o modelo de representatividade.
Não pode ser mais deste modo, porque corremos o risco de tirar a Dilma e colocar um idiota (no sentido mais grego da palavra) como o Aécio. Não tem mais sentido o presidencialismo. As decisões políticas não podem ficar na mão de uma pessoa, num país tão imenso e tão diverso social e culturalmente. Sei que a maioria das decisões são colegiadas, mas não adianta tirar o Cunha (e a parcialidade da justiça é o que faz com que ele ainda não tenha sido cassado). Contra Cunha não há indícios, existem sim provas cabais contra ele, todos já viram.
Se é para sair às ruas e lutar contra alguma coisa tem que ser por mudanças estruturais profundas. E isto, nem PT nem PSDB, muito menos o PMDB (pra falar dos maiores) querem, porque o que interessa a eles é manter uma estrutura que funciona para eles, não para a sociedade. Mas quem está propondo isto? Talvez o único partido seja o PSOL. Mas estamos, nós que lutamos contra uma ditadura, que faz mal até hoje ao país, vacinados contra um discurso bonito que pode se transformar em uma prática contrária, como fez o PT se aliando ao extinto PL, ao Maluf, ao Sarney, ao agronegócio e, com o pior dos piores, o PMDB.
Quem tem um pouquinho de lucidez, que consegue pensar com mais de meia-dúzia de palavras, deve propor uma grande mudança no sistema político representativo. Não há sentido a permanência no poder de um executivo que não obtenha maioria no legislativo. Fica ingovernável. Não dá para incluir as agendas mais importantes em pauta com um chefe de legislativo como inimigo. É óbvio que o inimigo vai minar suas pautas, mesmo que tenha sido eleito junto, como é o caso do PMDB e Eduardo Cunha.
No parlamentarismo europeu, ou grande parte dele, a maioria do congresso é que escolhe o primeiro ministro, que será o chefe de governo, ainda que o chefe de estado (sim, são coisas distintas) tenha outra função, que é a de preservar as coisas públicas. Um governo governa com a maioria, desde que não ultraje a constituição e saqueie a coisa pública, no sentindo latino mais literal: a res publica.
É claro que o PMDB, assim como o PSDB tem quadros capacitados e inteligentes, assim como o PT. E é uma pena que a população não tenha capacidade intelectual para pensar sobre isto. Grita “fora PT” como se o PMDB não fizesse parte do governo, e como se os problemas do país fossem sanar imediatamente após a saída da presidenta Dilma ou do PT do governo. Não vai. Se não pensarmos em um novo modelo de representatividade e numa reforma política imensa e radical, vai sair um néscio para entrar outro, vai sair um corrupto para entrar outro. E não falo apenas do executivo nacional. O mesmo acontece nos municípios e nos estados. A mudança tem que ser profunda.
E não devemos esperar que o sistema político vigente modifique este quadro. Eles não querem mudar, querem apenas permanecer no poder, de um semi-socialismo para um ultra capitalismo, como acontece na Argentina agora. Somente a união do povo, como aconteceu na Islândia (guardadas as devidas dimensões territoriais dos dois países), pode modificar este quadro.
Da minha parte, é óbvio ululante que prefiro o socialismo, e não é ele o mal em si, mas o modo como estes quadros que se dizem socialistas (e o são em parte apenas) conduziram as principais questões, tanto econômicas quanto sociais, culturais, etc.
Se o PT não romper imediatamente com a direita e seus programas, se esquecer seus aliados históricos, a classe trabalhadora e uma boa parcela dos intelectuais que ajudaram o partido a governar tanto tempo, se não se refundar, corremos o risco de dar de presente à extrema direita o argumento de que o “socialismo” falhou no brasil.
Só que não falhou, porque ainda não foi aplicado em sua totalidade. Quem reclama da Dilma não se tocou ainda que o segundo mandato dela está mais próximo daquele que Aécio e o PSDB fariam,  da manutenção dos privilégios do capital, do que se imagina.
Na lista do TSE dos políticos que não puderam se candidatar (é só procurar no sítio do tribunal), porque estão listados na "ficha suja", o partido que teve mais políticos barrados foi o PSDB. Depois o PP, depois o PMDB. Por que, então, a população quer sair às ruas no domingo gritando "fora PT", que está em quinto lugar neste rol? Só tem duas explicações: 1) ou porque perderam muitos privilégios, ou porque são idiotas (de novo, no sentido grego).
O que mais me deixa triste, e leio nos comentários de várias notícias, é que pouquíssimos se dão ao trabalho de ler com detalhes e pensar radicalmente no principal problema, que é o vício institucional, o modelo representativo, o modelo de federação, e tantas outras questões que podem ser repensadas, para não trocarmos seis por meia-dúzia É preciso pensar de forma dialética, porque se lessem, veriam que estão entrando numa onda burra, como dizia minha avó, “jogando a água suja da banheira com o bebê dentro”.


24 de setembro de 2015

família, famílias

não é atribuição do congresso legislar sobre as palavras. sendo assim, o que a lei dirá sobre o conceito de família não mudará o dicionário ou mesmo o modo com os indivíduos conversam ou como utilizam as palavras.

no aurélio, a palavra “família” é utilizada em várias áreas. existem famílias na botânica, na zoologia e até mesmo nas artes gráficas, quando utilizamos o termo “família de fontes”.

quando o aurélio conceitua família para a espécie humana utiliza três conceitos: “grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto (esp. o pai, a mãe e os filhos); grupo de pessoas com ancestralidade comum e; pessoas ligadas por casamento, filiação ou adoção. vejam que ele diz especialmente, e não obrigatoriamente. e vejam que fala sobre adoção e casamento.

se a lei já permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, logo, é família. portanto, a decisão do congresso não vale nada, porque pode, inclusive criar precedentes para que o congresso comece a legislar sobre o conceito de outras palavras no dicionário. e isto é censura. imagina um filósofo ter que se certificar na lei se pode ou não discorrer sobre as distorções ou usos de determinados conceitos. é censura e a censura é inconstitucional.

o dicionário também não é uma panaceia, aquele que decide o conceito. ele apenas registra o que o povo inventa nas ruas. e se existem pessoas do mesmo sexo morando juntas, se amando, dividindo uma casa, e se autodenominam família, o congresso não pode legislar contra isso, porque não vale nada, porque a outra lei que nos protege quando diz que a censura é inconstitucional.

o povo é o inventalínguas, dizia maiakovski. mas estes caras que se elegeram com grana das empreiteiras, nunca leram poesia na vida, nunca abriram um dicionário, enfim, não sabem nada de nada. qualquer um pode se autodenominar família e nenhuma lei feita por essa gente ignorante que ocupa o congresso pode dizer o contrário.

eu vou continuar usando o conceito de família como sendo um conjunto de pessoas que acreditam serem uma família. e quero ver alguém me prender porque estou descumprindo uma lei.

por fim, não esquecer que a palavra família tem origem do latim fâmulo, que significa escravo. libertar-se das amarras da família tradicional também é fundamental.

6 de julho de 2015

Entrevista a Murilo Mendes

        Conheci o Fábio Brüggemann nos 80. Ele era o agitador cultural da Faculdade de Letras. Poeta, contista, escritor de crônicas, diretor de teatro. E agitador cultural! Dirigia o jornal que publicava poetas românticos, imitadores de Leminski, concretistas sem rigor e poetas de verdade. Um dia, fui ao Fábio. Fui tímida e inseguramente ao Fábio. Trazia na bolsa de couro um poema. Entreguei. Assim como Cortázar esperou pela resposta de Borges quando entregou a Borges o conto Casa Tomada, eu esperei pela resposta do Fábio. Saiu. Ufa!

        Saí de Floripa, fui correr mundo e, depois de uns tempos, tempos anteriores ao advento da internet, tomo conhecimento de que o Fábio escrevia crônica aos sábados no Diário Catarinense. Fábio saiu do jornal. Ele, que também é cineasta, está com um filme novo na praça. Pedi que a ele que desse uma breve ideia do filme e ele foi até onde é possível, dizendo que não ia “contar o filme”, pois filme, como sabe até a gente que não entende de cinema, como eu, não se conta; filme se vê. 
Fábio fala de literatura e de religião. E de imprensa. O tema da imprensa ficou muito bom. Eu fiz uma provocação ao Fábio sobre a tal regulamentação da mídia e lhe disse que entendia que o objetivo em verdade era de censura. Fábio talvez tenha pensado que eu estivesse com o propósito de empurrá-lo para uma resposta, tal como um Faustão diante de uma Marieta Severo. E aí então se arrumou na cadeira e a pôs o entrevistador no seu devido lugar. Vivi meu dia de Fausto Silva. Só me faltou o salário. 
Ficou bem bacana a entrevista com o Fábio.

Murilo) Fábio, você é escritor, tem um livro de conto premiado, um livro que percorre o Século XX com pequenos relatos da vida de pessoas anônimas. Seu romance predileto – ou o que o mais te influenciou – é Memórias Sentimentais de João Miramar. Você acha que, no romance, não importa a história, mas a linguagem, especialmente o ritmo. É isso mesmo? Ou estou enganado? Dá para falar sobre essas coisas? 

Fábio) Sim, o que me interessa na literatura é o “como” se conta uma história e não a história em si. Muita gente diz: “´tal história dá um livro”. Toda história dá um livro, bom ou ruim vai depender do “como” ela será contada. Na literatura, os livros que mais me comovem pouco lembro das histórias, mas muito lembro do como elas foram contadas. A história de Riobaldo e Diadorim teria a mesma grandeza contada de outro jeito? Talvez sim, se por outro grande escritor. Mas seria bem ruim se mal contada. Prova de que a literatura sempre dependerá do “como”, e esse como é a forma, a linguagem, etc. Uma história qualquer contada de forma chata não adiantará de nada ser uma boa história, se é que existe isso. 

Murilo) Fábio, você é cineasta. Pelo que vi na sua página, você está produzindo e dirigindo um novo filme. A locação foi feita na Serra catarinense? Eu vi que tem padre no filme. Você não gosta de religião. Que história vai ser contada pelo cineasta ateu? 

Fábio) O filme, chamado Rio da Madre, foi rodado em Lages e é baseado em um conto meu chamado Riomadrenses, homônimo ao livro, publicado há mais de 15 anos (nem lembro a data). O curta-metragem é sobre o silêncio, centrado na figura de um bebê que não chora. Para aquela vila de Rio da Madre, o silêncio dele é estranho. Todos os outros bebês choram, porque este não? O protagonista, leitor de Santo Agostinho, defende o silêncio e se incomoda com os outros moradores que não conseguem compreender o outro, o diferente. É uma metáfora até óbvia contra o preconceito e contra o juízo a priori que fazemos do outro, ou do que não conhecemos. E se não conhecemos, não temos como compreender. O Paulo Francis tinha uma frase ilustrativa. Ele disse que não gostava de conhecer pessoas, porque não poderia mais espinafrá-las. Não vou contar o fim do filme, mas o padre é convidado pelos moradores para benzer a criança, por isso ele é personagem. 
Não gosto de religiões, apesar de me considerar um sujeito religioso, no sentido mais fundo da palavra. Respeito o outro, tento compreendê-lo. Estou sempre mais propício a dar a outra cara, aceito os outros como são, etc. As religiões, talvez com exceção do budismo, perderam (por conta de líderes sacanas e inescrupulosos, porque usam a fé alheia e ainda tomam dinheiro) totalmente a noção de religiosidade. 
Porém, não sou ateu. Não combato a fé dos outros em deus. Sou agnóstico, que significa, em última instância, “o que não sabe”, o ignorante. Por princípio, pelo que conheço da história da humanidade, a figura de deus foi criada pelos homens. Essa milenaridade arvorada pelos líderes religiosos, principalmente neopentecostais e católicos, difundem o erro de que o mundo começou com deus. Mas e as narrativas anteriores? Os filósofos gregos? Os latinos? Os etruscos? O Gilgamesh? As teogonias indígenas? Estes povos têm outras crenças. Por que – sempre pergunto – somente a ocidental cristã pode estar certa? Tenho algumas hipóteses, e a mais forte é a coligação desta crença com os poderes estabelecidos. Junte poder com manipulação histórica e da fé das pessoas e terás cordeirinhos para manipular à vontade. 
            Por fim, meu agnosticismo está em outro lugar, e tem a ver com a ciência, e, mais a fundo, com a ideia de começo do mundo. Neste aspecto, vou até o limite do provável. E não há nenhuma prova, nem mesmo evidências (e as evidências parecem muito mais respeitáveis (ainda que não conclusivas) na ciência do que na religião. A religião diz: “Não sabe? pois está em Deus”. A ciência se posiciona no agnosticismo? “Não sabe? não inventa, diz que não sabe e continua a pesquisa”. Nesse sentido sou totalmente agnóstico, ou seja, não sei de nada, mas nem por isso atribuo o não saber a um deus. 

Murilo) Fábio, Borges, lá pelo meio do Século passado, escreveu um ensaio chamado O Escritor Argentino e a Tradição. Nele, Borges defende, basicamente, que ser argentino – ou brasileiro, ou canadense – é uma fatalidade, de modo que o escritor não precisa se preocupar em pintar com cores locais a sua obra de ficção, pois, ainda que ele não o faça, a sua origem – nacionalidade – ficará marcada no que escreveu. Já Tolstoi aconselhou os escritores a falarem da sua aldeia. Universalismo x Regionalismo. Isso ainda faz sentido, Fábio? Diga lá. 

Fábio) Não me interesso por isso, por esta dicotomia entre universalismo e regionalismo, apesar de concordar com Tostói. O Borges, tanto seus poemas, quanto na sua prosa, era profundamente argentino. Quando fui a Buenos Aires a primeira vez compreendi muito mais, e consequentemente gostei muito mais de Borges. Ele estava em todas as esquinas, nas estátuas, na beira do rio da Prata e nas calles portenhas. Mas não vejo como um escritor não fale (ainda que de forma metafórica ou nas entrelinhas) da sua aldeia. Mesmo Becket, quando escreve Godot, está manifestando um momento e uma ideia totalmente europeia, do pós guerra, ainda que sirva para todo mundo. Não acho menos universal a prosa de Guimarães Rosa apenas porque seus personagens estão imersos no sertão. O amor de Riobaldo por Diadorim não é local é universal. Aquela forma e aquelas histórias servem para qualquer ser humano em qualquer lugar do mundo. Por isso, não vejo importância nessa falsa dicotomia. 

Murilo) Fábio, você escreveu crônicas para o jornal Diário Catarinense durante um longo período – dez anos, se não estou enganado. Hoje, você defende o controle da mídia – que você chama de regulação. Você não acha que há algo de errado quando jornalistas começam a pedir controle da imprensa? Por que só recentemente esse tema controle entrou em pauta para valer, e não lá atrás, na década de 90, por exemplo? Se não é desejo de controle de conteúdo, por que um dos argumentos é de que os meios de comunicação “deturpam os fatos”? 

Fábio) Você já respondeu. Li o projeto de lei, e ele fala em regulação, jamais em controle ou censura. Isso é uma ideia manipulada pelos que têm, aí sim, controle de toda a mídia. O princípio básico da regulação é tornar as leis claras e limitar a concentração de poder concessionário nas mãos de meia-dúzia, que usam, sim, este poder, para benefício próprio. E não pense que só agora isso é debatido. Ficou escondido durante anos a ideia porque a própria mídia e os governos anteriores não tinham interesse nisso. Nos anos 80, quando estudantes, já falamos em rever as concessões. E a lei não fala da mídia impressa, apenas das mídias concessionárias: tevê e rádio. Por que são concessões públicas? Por que estão no ar, são transmitidas por ondas e as ondas são de todos, ou seja: são públicas. Não há censura em fazer com que o uso das ondas, que são de todos os cidadãos, seja objeto de regras. Tudo o que é público tem regras de uso, para que não haja concentração de renda ou poder. A proposta de regulação (é grave manipulação semântica falar em controle) é apenas rever as regras de concessão. Ora, no país considerado mais democrático do mundo (os EUA) esta regulação já existe há tempos. O cidadão que tem um canal não pode ter outro, porque fere princípios democráticos de igualdade. Não pode, por exemplo, nos EUA, ser dono de mais de um jornal. Aqui em Floripa não existe mais concorrência. Como averiguarmos o outro lado? Imagine (e isto acontece no Brasil hoje) um cidadão ser dono de praticamente todas as concessões? E sabemos que elas são escolhidas pelo Congresso, e sabemos que a maioria dos deputados é dona de canais de tevê e de rádio. Como um cidadão que não tem uma concessão poderá disputar igualitariamente uma eleição com outro que é dono da maioria dos canais? É óbvio que o setor de jornalismo e da programação em geral manipulará informações. E trabalhei nos últimos anos bem próximo deste universo e senti o drama. Nunca esqueço quando o Bonson, que era cartunista do Estado, e sentava ao meu lado na redação, fazia uma charge ironizando o Bornhausen (na época ministro das comunicações). O dono do jornal passou por nós, disse que se O Estado não ganhasse a concessão do canal que pleiteava, o Bonson não arrumaria emprego em lugar mais nenhum. Isto sim é censura e então é falacioso dizer que nós, jornalistas, somos a favor da censura. Nós somos contra este tipo de manipulação. Hoje, se você trabalha para a RBS e é demitido, não trabalha mais em lugar algum, porque são donos de tudo. Eles são a informação, e eu não acredito em informação que venha de um lado só, porque é censura. O que queremos são regras mais justas e democráticas de distribuição de concessões. A regulação, que em última instância é apenas estabelecer regras de concessão, serve exatamente contra a censura de poucos em detrimento do amplo espectro de opinião da maioria. 
          Na mídia impressa não se toca. Qualquer um hoje pode ir numa gráfica, se tiver um pouco de grana, hoje nem é preciso tanta, e fazer um jornalzinho. A regra, neste caso, está em outro lugar na Lei, que é difamação, honra, que você, como juiz, sabe muito bem. O cara tira ali cem, duzentos exemplares e vai na rua distribuir. É garantia constitucional. Já as ondas eu não posso tê-las. E quem tem uma quer todas. Por isso é que as tevês e as rádios, principalmente, não querem informar de forma isenta e correta o que significa concessão pública de canais e de emissoras de rádio (e falam que regra é censura), porque há um monopólio, e os Estados Unidos, a Inglaterra agora, a Argentina, se tocaram que há que redistribuir as concessões e regulá-las, ou seja, fazer regra, regular. Você acha que a família Marinho vai querer vender os mais de 30 canais que possui? É um poder imenso acumulado. E isto não é democrático, isto sim é censura. E por isso , nós, jornalistas, somos a favor. 

Murilo) Fábio, fale sobre o que você quiser. E Obrigado. 

Fábio) Acho que falei tudo. E obrigado eu.

Pedi ao Fábio para indicar algo para o público e ele me passou este link, um vídeo feito com Salim Miguel, escritor que reside em Santa Catarina (não sei se o Salim nasceu em Santa). Vale a pena!

P.S. O Salim Miguel nasceu em Biguaçu, Santa Catarina.

Para ver o documentário, clique aqui (para a primeira parte) e aqui (para a segunda).

10 de maio de 2015

O PAPELÃO DA IMPRENSA NA MORTE DO EX-GOVERNADOR

quem me acompanhou profissionalmente, nos últimos 20 anos como colunista, tanto no jornal "a notícia" quanto no "diário", sabem os inúmeros embates que tive com o ex-governador luiz henrique.
ele, pessoalmente, mandou me demitir de um cargo no município, mesmo sendo governador, mais precisamente na fundação franklin cascaes, e o prefeito na época, dário berger, nem pestanejou em fazê-lo, porque eu criticava publicamente a falta de uma política clara para o setor.
ele criou um monstro chamado secretaria de turismo, cultura e esporte, usando um fundo que era para ser democrático e servir a todos, mas apenas plantou uma ideia extemporânea e desorbitada de cultura, cuja elite trouxa deste estado, e agora a imprensa, compra como se fosse a panaceia, como se isso tivesse sido (e infelizmente ainda é pensada como) um legado importante. e não é, porque não criou uma política pública democrática e de estado, apenas de interesse de governo.
caros colegas da imprensa, leiam os jornais nos quais vocês escrevem. pensem bem o quanto artistas e intelectuais se manifestaram contra esta penúria, contra a falta absoluta de uma política pública democrática para a cultura. pensem no quanto este esquema apelidado de sol usa recursos para a cultura se aproveitando apenas para financiar eventos, sem que o conselho aprove, deixando à míngua os setores que fazem arte e pensam cultura. o ex-governador armou um circo de autobenefício partidário, e incluo aí as secretarias regionais, que em nada contribuiu para o incentivo à cultura do estado.
se querem falar que o cara era a raposa, o articulador, o líder e o tal, um exímio político, pois que falem, mas não inventem que ele era da cultura, porque isso é piada de mau gosto com o próprio e com os artistas deste estado.
o modo de fazer política do ex-governador era um retrocesso, era bizarro, colonial, pré-moderno, porque era um modo não de satisfazer os anseios públicos, mas apenas de perpetuação no poder. e a nossa imprensa fica fazendo esse jornalismo laudatório que não contribui em nada, nem com a informação e muito menos com o conhecimento.
e o pior: jogam a história na lata do lixo.
apesar de tudo, descanse em paz governador, meus sinceros pêsames a seus familiares, amigos e admiradores, mas desejo do fundo do coração que seu modo de fazer política seja apagado pra sempre deste estado.

9 de fevereiro de 2015

Carta de renúncia

           Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, fevereiro de 2015.

       Prezados associados da Cinemateca Catarinese-ABD/SC, presidente e membros do Conselho Estadual de Cultura, presidente da Fundação Catarinense de Cultura e Secretário de Turismo, Cultura e Esporte.

        Durante este mandato – meus colegas conselheiros, bem como os registros nas atas atestam – tentamos ser o mais “conselheiros” possíveis. Este aconselhamento, amparado por lei e pelas reivindicações propostas, tanto históricas (resultantes da criação do Fórum Floripa, da Frente em Defesa da Cultura e das conferências estaduais de cultura) quanto de manifestações públicas contra a ausência de uma política pública de cultura de estado e não de governo (a passeata contra a morte da cultura e movimento Ocupa Cic), foram exaustivamente ignoradas por este governo.
           Por conta destas demandas públicas, solicitei, como conselheiro, inúmeras vezes a revisão geral das leis que regem a Cultura no Estado; solicitei por diversas vezes a criação de uma secretaria de cultura exclusiva para a cultura; evoquei a vontade dos Fóruns e das Conferências por uma política de estado, e não de governo para o setor; critiquei severamente as regras descabidas e destoantes daquelas propostas pela sociedade; critiquei o absurdo, quase como no romance “O processo”, de Kafka, das regras do Seitec e do Funcultural; alertei o Conselho sobre a demolição do prédio (patrimônio cultural e arquitetônico) que abrigava o Colégio Aristiliano Ramos em Lages, quando nos manifestamos contrários; sugeri novas minutas para os editais Elizabete Anderle e para o Prêmio Catarinense de Cinema (objeto de lei, a qual não foi cumprida em 2014) e, por fim, fui contrário reiteradas vezes ao modelo de Conselho que está mais para analisar projetos do Funcultural do que para debater e propor políticas públicas, sua natural função.
        Porém, a estrutura montada pelo ex-governador Luiz Henrique e continuada pelo atual governador, Raimundo Colombo, mantém o Funcultural apenas para financiamento de projetos de interesse do governo, mais do que da população, dos artistas e dos produtores culturais. Decretos enviados à revelia e de última hora, quase sempre no fim do ano, para a Assembleia Legislativa, fizeram com que os recursos do Funcultural fossem destinados ao custeio da máquina pública, contrariando todos os anseios e necessidades do setor artístico e cultural do Estado e, o pior: quase todos os debates e proposições do Conselho foram solenemente ignorados pelo Governo.
        Mal inicia o segundo mandato deste governo, o atual secretário de Turismo, Esporte e Cultura permanece o mesmo que foi apenas a uma reunião do Conselho e se declarou contrário à criação de uma secretaria de Cultura, proposição esta historicamente reivindicada pelos trabalhadores e produtores culturais. Sinal inequívoco que o governo não quer diálogo com o setor artístico e cultural.
         Sendo assim, sentindo-me completamente inútil no Colegiado, renuncio ao meu mandato e solicito
à Cinemateca Catarinense/ABD-SC que escolha um novo representante.
        Aos conselheiros, espero que continuam propondo as mudanças necessárias. Aos artistas, produtores e intelectuais, espero que continuem cobrando coletivamente. Sempre militei a favor de uma política pública de estado, com financiamento público através de editais, e vou continuar cobrando isto, como sempre fiz, porque sinto-me muito mais útil escrevendo, filmando, lendo e pensando fora do Conselho do que dentro. Ao menos de fora, a sensação de liberdade de ação e de pensamento, sem as amarras institucionais, é muito menos oficiosa e mais feliz do que ver todas as proposições deliberadas no Conselho (a custa de muito debate e aprendizado) serem frequentemente ignoradas pelo governo.
        Chegamos à conclusão, com meus colegas conselheiros, em carta debatida, votada e deliberada, que deveria ser enviada ao Secretário de plantão (foram mais de cinco em um mandato de quatro anos, sem contar um ano inteiro de vacância na Fundação Catarinense de Cultura), que não falta dinheiro para o financiamento da cultura, mas sim uma gestão competente, que seja feita por profissionais e gente do setor, que compreenda as reais necessidades de implantação de uma política de incentivo que não passe pela ideia de que cultura é apenas evento, mas produção, reflexão, distribuição, formação, invenção e ruptura de paradigmas conservadores, como historicamente acontece em Santa Catarina (sobre isso, escrevi o artigo, publicado na revista Subtrópicos, n. 13, da editora da Ufsc (reproduzida no post anterior).
         Enfim, na carta, sobre a qual não tenho informação se foi enviada ou não ao governo, encerrávamos dizendo que é necessário muito pouco para um gestão justa e democrática para a cultura, a qual deveria passar por: 1) Criação de uma secretaria de cultura; 2) reformulação da lei que rege o Funcultural, e que ele seja administrado por um conselho paritário; 3) e que todos os recursos deste fundo devem ser investidos em editais públicos, deixando as despesas com a máquina administrativa para dotações orçamentárias específicas, e não para o fundo, além, é claro, da cobrança mais antiga proposta pelos produtores e artistas catarinenses: uma política de estado, baseada em legislação específica bem clara, para que nenhum governo retroceda, usando recursos de fundo para custeio da máquina e projetos vindos do próprio governo.
      Saio ciente de que propus reiteradas vezes tudo isto, baseado sempre em debates públicos, e na Associação à qual representei (sempre relatando sobre as deliberações feitas no Conselho).
       Obrigado à Cinemateca Catarinense/-ABD/SC por ter confiado em mim, aos conselheiros que me aturaram, principalmente à presidente do Conselho, Mary Garcia.
      Tomara que o governo ouça a classe, ouça e atenda o Conselho (que é para isto que existe legalmente), e muita sorte ao novo representante do audiovisual.

Fábio Brüggemann
Editor, escritor e diretor cinematográfico

2 de dezembro de 2014

O CONSERVADORISMO COMO TRAÇO CULTURAL DO CATARINENSE

       Proponho aqui algumas pequenas teses e um debate sobre a gênese e a continuidade de uma suposta e aludida “cultura catarinense”.
     
     Não há consenso, unidade, igualdade, pensamento único, ou qualquer hipótese da existência de traços que denotem a ideia do que se propaga, notadamente por gestores públicos e políticos, como sendo “identidade cultural do catarinense”. É uma falácia à qual não  há comprovação. Ao contrário. 

      O “catarinensismo” é uma invenção geopolítica. Seja pela formação ao longo da história, seja pelo variado traço étnico: imigrantes portugueses, alemães, italianos, poloneses, japoneses, população negra trazida à fórceps e escravizada e os primeiros habitantes indígenas. Estes últimos, apesar de pertenceram a um tronco comum, também têm cada qual seu traço cultural: xoquelengues, carijós, caigangues etc., além, no planalto serrano, da presença marcante até hoje do gaucho (pronuncio gáucho) vindo do pampa cisplatino.
      
         Os imigrantes europeus, a maioria italianos e alemães, trouxeram a presença da moral do trabalho, pela qual, com ajuda de seu deus judaico-cristão, de seus braços fortes e de uma terra fértil, também por herança, em suas visões, do mesmo deus. Assim, o paraíso brasileiro tudo lhes daria. Mas existia um entrave: os indígenas. A solução, também com o amém de seus deus, já que os habitantes eram “outros” e sem “alma”, foi combatê-los do mesmo modo como espanhóis e portugueses já haviam feito antes. O mandamento cristão de não matar foi interpretado por uma parte destes imigrantes como sendo válido apenas aos seus pares.
    
      Não foram poucas as vezes que, quando criança (e aviso que sou descendente destes imigrantes e nascido em Santa Catarina), ouvi de vizinhos o orgulho de ser bugreiro, de matar essa gente sem deus (o deles, é claro), que não “gostava de trabalhar”. Este mesmo lema, por exemplo, levado ao campo político, consagra o catarinense como sendo o mais avesso às políticas sociais e de distribuição de renda, pois “quem não trabalha não merece ganhar nada”. O pensamento do bugreiro – afinal, para o modelo de nossos colonos,  o índio não trabalhava – continua valendo, pois um imigrante não compreendeu e não quis compreender, pela força de sua educação e cultura, que a ideia de trabalho para si não serve aos índios.

      O catarinense, a partir deste único traço que consigo perceber de unidade, é conservador, preconceituoso, ignorante sobre macroquestões humanitárias, sociais, geopolíticas e, principalmente, sobre aquilo que não lhes pertence: a cultura exógena, a arte do outro, o pensamento do outro, a vontade e o desejo do outro. Este único traço (insisto que é apenas a gênese de uma pequena tese a ser debatida) é positivista e, não raro, promove e promoveu movimentos neonazistas em colônias alemãs nos anos de 1930, fartamente documentados.
     
       É curioso notar, na produção cultural do Estado, que os artistas mais conhecidos e que mais se destacaram além das fronteiras estaduais vêm de fora deste caldo. Cruz e Sousa, no século XIX, que era negro, mas teve acesso aos seus contemporâneos, principalmente Baudelaire, e citava com frequência filósofos como Shopenhauer, além de ter amigos com os quais debatia o que acontecia no mundo naquele momento em que não existia sequer telefone, e que os livros vinham de navio, é um criador quase apartado da produção pré e pós a ele mesmo, guardadas as devidas contextualizações necessárias.
        
     Nossos colonos não trouxeram livros em sua bagagem.  Vale lembrar que muito da produção cultural da Bahia veio do Recôncavo, pouso dos imigrantes árabes, e a presença dos livros foi fundamental para sua formação. A verve revolucionária de Wally Salomão, Glauber Rocha, Tom Zé e Caetano Veloso é de lá. Qual artista catarinense, com a formação cultural colona que nos tivemos pretendeu revolucionar algo?

     O mais notório deles foi Rogério Sganzerla, descendente de imigrantes italianos, empreendedores e com o perfil relatado antes, mudou-se muito jovem para São Paulo e lá teve condições de fazer seus filmes. Em Joaçaba, não apenas pela falta de equipamento, mas por ausência de estímulo, parceria e afinidade intelectual, nunca teriam sido feitos. Em várias entrevistas que deu, detonava o atraso e o provincianismo e o conservadorismo do Estado e de sua cidade natal.
     
       Não significa, no entanto, que a formação cultural do catarinense seja desprezível por isto. Os catarinenses são conhecidos como leais trabalhadores, honestos, cordiais, excelentes anfitriões, empreendedores, mas não são apenas estas virtudes que dão estofo ou estímulo para alguém produzir arte, desafinar o coro dos contentes, largar o preconceito de lado, enfim, deixar o cordialismo conservador e propor algo essencialmente novo. Tanto é, que não há proposição de vulto nesse sentido. É óbvio que há, mas não de vulto.
      
        Para as políticas públicas para a arte e a cultura este resultado é quase uma barbárie. O atual governador, Raimundo Colombo, por exemplo, fruto desta formação, crê que um dos imóveis mais simbólicos da cidade onde nasceu, Lages (por coincidência, estudei nesta escola), o Colégio Aristiliano Ramos, cuja arquitetura dos anos 30 é considerada como sendo patrimônio não apenas arquitetônico, mas cultural e paisagístico, por respeitar a linha do céu do vasto planalto serrano, deve ser demolido.  Aliás, há um projeto geral, desde o governo anterior, que é o de desativar todos os imóveis que abrigaram as escolas públicas estaduais considerados “antigos”. Depois de desativados, os imóveis, sem manutenção, entram em seu natural declínio material, para se usar o argumento de que o imóvel “pode cair a qualquer momento”. Isto tem acontecido em várias cidades, e só em Florianópolis são duas. O conluio com a especulação imobiliária é evidente. Este tipo de decisão denota a ignorância da qual somos herdeiros.
      
       O mesmo governador, agora reeleito, no dia da reabertura do teatro Ademir Rosa, chegou a ovacionar o fato de que “muitos artistas se apresentaram aqui de graça, pelo amor ao aplauso”, ignorando que não há arte sem artista se os mesmos não têm o que comer. Escrevi na época que, sendo assim, cada vez que chegasse minha conta de luz eu aplaudiria para ela e estaria paga. Mais uma vez a ideia do colono de que só é considerado trabalho aquele braçal, e que pensar, criar, ou apenas viver, não é correto.
Há muitos anos, mais de duas décadas, artistas, intelectuais, pensadores, produtores culturais solicitam uma política pública para a cultura que seja de Estado. Significa que sem leis que as embasem e que as garantam, governos podem achar que “incentivar a cultura” é publicar o livro do sobrinho, bancar uma escola de dança clássica, trazer um balé da Polônia, ou financiar uma atriz global. Para que a política seja de Estado (porque todos os governos que quiseram eles mesmos produzir cultura tiveram viés fascista) é preciso um fundo (que já existe, porém extremamente mal gerido) e que este fundo seja usado para a publicação anual de editais de incentivo.
     
         Para construir esta política de Estado já foram realizados inúmeros fóruns, seminários e conferências, criados documentos e proposições. Apesar de toda diversidade necessária, há uma receita básica consensual. É necessário criar uma secretaria de cultura, realizar concurso para que técnicos ocupem os cargos, escolher um secretário que seja da área, não o filho de um político que nada entende do negócio (como é hoje), informar a toda população de que existe um fundo, fazer com que este fundo seja administrado por um conselho paritário, e que ele financie projetos por meio de editais públicos lançados anualmente. Parece simples, e é. Por que não é aplicada? Por que o ex-governador do Estado, Luiz Henrique da Silveira, descobriu que os recursos dos fundos poderiam e deveriam ser usados para políticas de governo e não de estado, o que acontece até hoje.

        Desde que, ainda que de forma esporádica, os editais existem, várias obras, em todas as áreas têm sido publicadas, vistas, tocadas, apreciadas. E se fosse por aval apenas dos governos, com certeza elas não existiriam. Ao contrário dos editais públicos para a construção de estradas, de escolas, pontes, que devem privilegiar a ergonomia, o acerto, a lógica, os editais de apoio às artes devem também investir na experimentação, no imaginário e, por que não, no erro, como bem esclareceu o modernista Oswald de Andrade, quando disse que a poesia é a contribuição milionária de todos os erros. E é por isto que não pode ser política de governo. Quem faz arte são pessoas, grupos, jamais governos. E é óbvio ainda que os governos privilegiam grandes artistas, de cachês milionários, eventos grandiloquentes (panis et circenses) que se vão num dia, sem pensar em formação, preservação, exibição, distribuição e produção de arte. A publicação de um jovem poeta, por mais precário que seja seu livro, através de editais públicos, é muito mais importante para a cultura de um povo do que um evento milionário de uma dupla sertaneja qualquer. E muito mais barato para os cofres públicos. E muito mais democrático.


     Ainda sobre o conservadorismo cordial por parte da sociedade civil, instituições quase medievais resistem com seu pomposo arcaísmo, quase sempre de acordo com os governos, até porque sobrevivem deles, por força de lei. Apesar disso, de saberem que a lei os protege neste sentido, tanto o Instituto Histórico e Geográfico, quanto a Academia Catarinense de Letras, por exemplo, refutam pensamentos radicais (no sentido marxista, de ir às raízes), revolucionários, rebeldes, erráticos. A pompa e a circunstância, as solenidades enfadonhas, o compadrio protocolar, os discursos de terno e gravata ainda são a tônica nestas instituições, que, queiramos ou não, são reflexo do único traço do “catarinense”: o conservadorismo que nos coloca à margem da produção artística e cultural brasileira desde que os colonizadores do fim do século XIX e começo do XX chegaram por aqui.


Originalmente publicado na revista Subtrópicos, número 13, disponível aqui.

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