Conheci o Fábio Brüggemann nos 80. Ele era o agitador cultural da Faculdade de Letras. Poeta, contista, escritor de crônicas, diretor de teatro. E agitador cultural! Dirigia o jornal que publicava poetas românticos, imitadores de Leminski, concretistas sem rigor e poetas de verdade. Um dia, fui ao Fábio. Fui tímida e inseguramente ao Fábio. Trazia na bolsa de couro um poema. Entreguei. Assim como Cortázar esperou pela resposta de Borges quando entregou a Borges o conto Casa Tomada, eu esperei pela resposta do Fábio. Saiu. Ufa!
Saí de Floripa, fui correr mundo e, depois de uns tempos, tempos anteriores ao advento da internet, tomo conhecimento de que o Fábio escrevia crônica aos sábados no Diário Catarinense. Fábio saiu do jornal. Ele, que também é cineasta, está com um filme novo na praça. Pedi que a ele que desse uma breve ideia do filme e ele foi até onde é possível, dizendo que não ia “contar o filme”, pois filme, como sabe até a gente que não entende de cinema, como eu, não se conta; filme se vê.
Fábio fala de literatura e de religião. E de imprensa. O tema da imprensa ficou muito bom. Eu fiz uma provocação ao Fábio sobre a tal regulamentação da mídia e lhe disse que entendia que o objetivo em verdade era de censura. Fábio talvez tenha pensado que eu estivesse com o propósito de empurrá-lo para uma resposta, tal como um Faustão diante de uma Marieta Severo. E aí então se arrumou na cadeira e a pôs o entrevistador no seu devido lugar. Vivi meu dia de Fausto Silva. Só me faltou o salário.
Ficou bem bacana a entrevista com o Fábio.
Murilo) Fábio, você é escritor, tem um livro de conto premiado, um livro que percorre o Século XX com pequenos relatos da vida de pessoas anônimas. Seu romance predileto – ou o que o mais te influenciou – é Memórias Sentimentais de João Miramar. Você acha que, no romance, não importa a história, mas a linguagem, especialmente o ritmo. É isso mesmo? Ou estou enganado? Dá para falar sobre essas coisas?
Fábio) Sim, o que me interessa na literatura é o “como” se conta uma história e não a história em si. Muita gente diz: “´tal história dá um livro”. Toda história dá um livro, bom ou ruim vai depender do “como” ela será contada. Na literatura, os livros que mais me comovem pouco lembro das histórias, mas muito lembro do como elas foram contadas. A história de Riobaldo e Diadorim teria a mesma grandeza contada de outro jeito? Talvez sim, se por outro grande escritor. Mas seria bem ruim se mal contada. Prova de que a literatura sempre dependerá do “como”, e esse como é a forma, a linguagem, etc. Uma história qualquer contada de forma chata não adiantará de nada ser uma boa história, se é que existe isso.
Murilo) Fábio, você é cineasta. Pelo que vi na sua página, você está produzindo e dirigindo um novo filme. A locação foi feita na Serra catarinense? Eu vi que tem padre no filme. Você não gosta de religião. Que história vai ser contada pelo cineasta ateu?
Fábio) O filme, chamado Rio da Madre, foi rodado em Lages e é baseado em um conto meu chamado Riomadrenses, homônimo ao livro, publicado há mais de 15 anos (nem lembro a data). O curta-metragem é sobre o silêncio, centrado na figura de um bebê que não chora. Para aquela vila de Rio da Madre, o silêncio dele é estranho. Todos os outros bebês choram, porque este não? O protagonista, leitor de Santo Agostinho, defende o silêncio e se incomoda com os outros moradores que não conseguem compreender o outro, o diferente. É uma metáfora até óbvia contra o preconceito e contra o juízo a priori que fazemos do outro, ou do que não conhecemos. E se não conhecemos, não temos como compreender. O Paulo Francis tinha uma frase ilustrativa. Ele disse que não gostava de conhecer pessoas, porque não poderia mais espinafrá-las. Não vou contar o fim do filme, mas o padre é convidado pelos moradores para benzer a criança, por isso ele é personagem.
Não gosto de religiões, apesar de me considerar um sujeito religioso, no sentido mais fundo da palavra. Respeito o outro, tento compreendê-lo. Estou sempre mais propício a dar a outra cara, aceito os outros como são, etc. As religiões, talvez com exceção do budismo, perderam (por conta de líderes sacanas e inescrupulosos, porque usam a fé alheia e ainda tomam dinheiro) totalmente a noção de religiosidade.
Porém, não sou ateu. Não combato a fé dos outros em deus. Sou agnóstico, que significa, em última instância, “o que não sabe”, o ignorante. Por princípio, pelo que conheço da história da humanidade, a figura de deus foi criada pelos homens. Essa milenaridade arvorada pelos líderes religiosos, principalmente neopentecostais e católicos, difundem o erro de que o mundo começou com deus. Mas e as narrativas anteriores? Os filósofos gregos? Os latinos? Os etruscos? O Gilgamesh? As teogonias indígenas? Estes povos têm outras crenças. Por que – sempre pergunto – somente a ocidental cristã pode estar certa? Tenho algumas hipóteses, e a mais forte é a coligação desta crença com os poderes estabelecidos. Junte poder com manipulação histórica e da fé das pessoas e terás cordeirinhos para manipular à vontade.
Por fim, meu agnosticismo está em outro lugar, e tem a ver com a ciência, e, mais a fundo, com a ideia de começo do mundo. Neste aspecto, vou até o limite do provável. E não há nenhuma prova, nem mesmo evidências (e as evidências parecem muito mais respeitáveis (ainda que não conclusivas) na ciência do que na religião. A religião diz: “Não sabe? pois está em Deus”. A ciência se posiciona no agnosticismo? “Não sabe? não inventa, diz que não sabe e continua a pesquisa”. Nesse sentido sou totalmente agnóstico, ou seja, não sei de nada, mas nem por isso atribuo o não saber a um deus.
Murilo) Fábio, Borges, lá pelo meio do Século passado, escreveu um ensaio chamado O Escritor Argentino e a Tradição. Nele, Borges defende, basicamente, que ser argentino – ou brasileiro, ou canadense – é uma fatalidade, de modo que o escritor não precisa se preocupar em pintar com cores locais a sua obra de ficção, pois, ainda que ele não o faça, a sua origem – nacionalidade – ficará marcada no que escreveu. Já Tolstoi aconselhou os escritores a falarem da sua aldeia. Universalismo x Regionalismo. Isso ainda faz sentido, Fábio? Diga lá.
Fábio) Não me interesso por isso, por esta dicotomia entre universalismo e regionalismo, apesar de concordar com Tostói. O Borges, tanto seus poemas, quanto na sua prosa, era profundamente argentino. Quando fui a Buenos Aires a primeira vez compreendi muito mais, e consequentemente gostei muito mais de Borges. Ele estava em todas as esquinas, nas estátuas, na beira do rio da Prata e nas calles portenhas. Mas não vejo como um escritor não fale (ainda que de forma metafórica ou nas entrelinhas) da sua aldeia. Mesmo Becket, quando escreve Godot, está manifestando um momento e uma ideia totalmente europeia, do pós guerra, ainda que sirva para todo mundo. Não acho menos universal a prosa de Guimarães Rosa apenas porque seus personagens estão imersos no sertão. O amor de Riobaldo por Diadorim não é local é universal. Aquela forma e aquelas histórias servem para qualquer ser humano em qualquer lugar do mundo. Por isso, não vejo importância nessa falsa dicotomia.
Murilo) Fábio, você escreveu crônicas para o jornal Diário Catarinense durante um longo período – dez anos, se não estou enganado. Hoje, você defende o controle da mídia – que você chama de regulação. Você não acha que há algo de errado quando jornalistas começam a pedir controle da imprensa? Por que só recentemente esse tema controle entrou em pauta para valer, e não lá atrás, na década de 90, por exemplo? Se não é desejo de controle de conteúdo, por que um dos argumentos é de que os meios de comunicação “deturpam os fatos”?
Fábio) Você já respondeu. Li o projeto de lei, e ele fala em regulação, jamais em controle ou censura. Isso é uma ideia manipulada pelos que têm, aí sim, controle de toda a mídia. O princípio básico da regulação é tornar as leis claras e limitar a concentração de poder concessionário nas mãos de meia-dúzia, que usam, sim, este poder, para benefício próprio. E não pense que só agora isso é debatido. Ficou escondido durante anos a ideia porque a própria mídia e os governos anteriores não tinham interesse nisso. Nos anos 80, quando estudantes, já falamos em rever as concessões. E a lei não fala da mídia impressa, apenas das mídias concessionárias: tevê e rádio. Por que são concessões públicas? Por que estão no ar, são transmitidas por ondas e as ondas são de todos, ou seja: são públicas. Não há censura em fazer com que o uso das ondas, que são de todos os cidadãos, seja objeto de regras. Tudo o que é público tem regras de uso, para que não haja concentração de renda ou poder. A proposta de regulação (é grave manipulação semântica falar em controle) é apenas rever as regras de concessão. Ora, no país considerado mais democrático do mundo (os EUA) esta regulação já existe há tempos. O cidadão que tem um canal não pode ter outro, porque fere princípios democráticos de igualdade. Não pode, por exemplo, nos EUA, ser dono de mais de um jornal. Aqui em Floripa não existe mais concorrência. Como averiguarmos o outro lado? Imagine (e isto acontece no Brasil hoje) um cidadão ser dono de praticamente todas as concessões? E sabemos que elas são escolhidas pelo Congresso, e sabemos que a maioria dos deputados é dona de canais de tevê e de rádio. Como um cidadão que não tem uma concessão poderá disputar igualitariamente uma eleição com outro que é dono da maioria dos canais? É óbvio que o setor de jornalismo e da programação em geral manipulará informações. E trabalhei nos últimos anos bem próximo deste universo e senti o drama. Nunca esqueço quando o Bonson, que era cartunista do Estado, e sentava ao meu lado na redação, fazia uma charge ironizando o Bornhausen (na época ministro das comunicações). O dono do jornal passou por nós, disse que se O Estado não ganhasse a concessão do canal que pleiteava, o Bonson não arrumaria emprego em lugar mais nenhum. Isto sim é censura e então é falacioso dizer que nós, jornalistas, somos a favor da censura. Nós somos contra este tipo de manipulação. Hoje, se você trabalha para a RBS e é demitido, não trabalha mais em lugar algum, porque são donos de tudo. Eles são a informação, e eu não acredito em informação que venha de um lado só, porque é censura. O que queremos são regras mais justas e democráticas de distribuição de concessões. A regulação, que em última instância é apenas estabelecer regras de concessão, serve exatamente contra a censura de poucos em detrimento do amplo espectro de opinião da maioria.
Na mídia impressa não se toca. Qualquer um hoje pode ir numa gráfica, se tiver um pouco de grana, hoje nem é preciso tanta, e fazer um jornalzinho. A regra, neste caso, está em outro lugar na Lei, que é difamação, honra, que você, como juiz, sabe muito bem. O cara tira ali cem, duzentos exemplares e vai na rua distribuir. É garantia constitucional. Já as ondas eu não posso tê-las. E quem tem uma quer todas. Por isso é que as tevês e as rádios, principalmente, não querem informar de forma isenta e correta o que significa concessão pública de canais e de emissoras de rádio (e falam que regra é censura), porque há um monopólio, e os Estados Unidos, a Inglaterra agora, a Argentina, se tocaram que há que redistribuir as concessões e regulá-las, ou seja, fazer regra, regular. Você acha que a família Marinho vai querer vender os mais de 30 canais que possui? É um poder imenso acumulado. E isto não é democrático, isto sim é censura. E por isso , nós, jornalistas, somos a favor.
Murilo) Fábio, fale sobre o que você quiser. E Obrigado.
Fábio) Acho que falei tudo. E obrigado eu.
Pedi ao Fábio para indicar algo para o público e ele me passou este link, um vídeo feito com Salim Miguel, escritor que reside em Santa Catarina (não sei se o Salim nasceu em Santa). Vale a pena!
P.S. O Salim Miguel nasceu em Biguaçu, Santa Catarina.
Para ver o documentário, clique
aqui (para a primeira parte) e
aqui (para a segunda).