A hermenêutica da coisa
A elite brasileira beira ao nojo, quase sempre. É iletrada, consumista, acha que a Veja é a maior fonte de verdade do universo, rejeita qualquer dialética, é preguiçosa – no que eu consideraria virtude se não fosse a paradoxal crença na moral do trabalho como transcendência – e, o pior de tudo, adora bajular quem está no poder.
O episódio da desembargadora Rejane Andersen – acusada de usar da prerrogativa do cargo para tentar dissuadir os policiais a liberarem o veículo irregular de seu filho – é bastante revelador, porém, não comum no Brasil que carrega nas costas uma elite com todas as “virtudes” citadas acima. Pior do que a suposta tentativa da magistrada foi a divulgação de uma nota infeliz da Associação dos Magistrados Catarinenses, que só fez piorar o fato.
Primeiro, porque a priori a justiça só pode se manifestar após extenso inquérito e ouvir todas as partes envolvidas num litígio. Mas numa leitura atenta das entrelinhas da nota (coisa que os próprios estudiosos do Direito chamam de hermenêutica) percebe-se que a AMC julgou por antecedência, inocentando um membro de seus pares, apenas ouvindo uma das partes, qual seja, o próprio “relato” da magistrada. A nota ainda confirma que a desembargadora “começa a questionar de maneira educada (...) se havia possibilidade de liberar todos os envolvidos antes da chegada do caminhão-guincho”. Ora, se ela conhece mesmo a lei, como a própria nota avisa, jamais deveria, mesmo que de forma educada, “questionar” a possibilidade da liberação dos envolvidos. Se está irregular, o policial não pode fazer vistas grossas, e, como um deles diz no vídeo, “aí mesmo é que tem que dar o exemplo”.
Mas num Estado onde um governador não pode ser julgado apenas pela condição de estar exercendo o cargo, mesmo com evidências, as quais todos conhecemos, e ainda assim permanece no poder, coisa que AMC nunca divulgou um nota para esclarecer à população o motivo de tal descalabro, não dá para exigir da desembargadora uma atitude que seria a mais digna ao cargo que ela exerce, a de pedir desculpas, e dizer que os juízes, assim como nós, “simples mortais” sujeitos às benesses e rigores da lei, também erram.
Publicado no Diário Catarinense, 24 de abril de 2010.