29 de setembro de 2007

O conselho do Conselho

Na santa e brega Catarina existe um Conselho Estadual de Cultura. Seus conselheiros devem ser indicados, paritariamente, pela sociedade civil organizada e pelo governo. Além da função de analisar projetos inscritos no até aqui quase insano e equivocado Funcultural, que é o que vinha acontecendo até semana passada, o Conselho deveria também debater e sugerir as políticas públicas para a cultura por estas bandas.

Após quase seis anos de descalabros e escândalos na área, o Conselho decidiu aconselhar, enviando uma carta ao governo (diga-se, primeiramente, ao Secretário de Turismo, Esporte, e, bem por último, Cultura). A carta é promissora e importante por dois aspectos. Primeiro porque explica de forma quase didática, ao governo, tudo aquilo que a própria classe cultural e artística vem debatendo há mais de uma década, no mínimo; segundo porque, dessa vez, ou o governo ouve e aplica uma política clara, democrática e sensata para o setor, ou entrará para a história como aquele fez ouvidos moucos, priorizando grupos e eventos extemporâneos e megalomaníacos.

No resumo da ópera, os conselheiros solicitam, primeiro, autonomia das suas deliberações. Hoje, os projetos, aprovados ou não pelo Conselho, são desaprovados, ou não, por um instituto rechaçado desde sua criação, chamado comitê gestor. A carta pede, ainda, a revisão do papel das secretarias regionais, que hoje cumprem a função de sentar em cima de projetos que não são do interesse do governo. Nesse sentido, pede também que a análise dos projetos tenha como parâmetro seu mérito e não o compadrio político de seus proponentes, como acontece hoje.

Cultura deve ser tratada como questão de estado, não de governo, é outra reivindicação do documento. Para tanto, pede poder para além das trocas de governo, até porque os governos morrem, mas o Estado e suas instituições ficam. Arte longa, vida breve, dizia Goethe. A carta pede ainda uma revisão urgente da legislação que rege o Fundo, porque foram tantos os decretos baixados, sem nenhum debate prévio sobre sua praticidade à produção, que já é um monstro jurídico, repleto de incongruências e imperfeições.

Outro pedido do Conselho, solicitado há anos pela classe, é o lançamento urgente dos editais, aliás, previsto na própria legislação que criou o tal Fundo, porque eles sempre funcionaram por ser prêmio e não através da captação de recursos junto a iniciativa privada, priorizando méritos e não compadrios - vide os exemplos dos editais da Funarte, e mesmo os existentes aqui mesmo em outras décadas. Os editais são o único modelo funcional de investimento à cultura que não passa por apadrinhamento, enterrando de vez as políticas de governo.

São muitas as reivindicações, todas elas fundamentais, mas reporto as mais importantes, e registro aqui porque, finalmente, não dá mais pra dizer que os protestos contra essa malfadada forma de administrar recursos públicos venham unicamente de um grupo chamado de tóxico pelo governo (ainda que enorme e representativo), mas de pessoas, inclusive, indicadas pelo próprio governo.

Creio que chegou o momento que ou se abre condições para um grande debate, expulsando todo e qualquer ranço partidário no setor, para que se crie uma política que ultrapasse sua própria visão governamental, triste e medíocre, ou a santa e brega Catarina continuará produzindo aquilo que se vê por aí apenas oficialmente, ainda que pelas margens existam grupos, pessoas, obras, enfim, gente que produz, e muito, antenada com seu tempo, mas ainda fica à mercê do monstrengo chamado mercado. E arte não é mercado, por favor.
ZULEIKA ZIMBÁBUE

Como a história é contada sempre de forma imparcial e do ponto de vista do narrador (como poderia ser diferente?) começarei aqui uma breve (e obviamente parcial) apresentação biográfica de uma das figuras mais emblemáticas, porém à margem, da Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, Zuleika Zimbábue.
Oficialmente ela nasceu num rincão da África Setentrional como macaca. Porém, um laboratório inglês levou para Londres, onde, num tragicômico acidente provocado por um cientista português, misturou o DNA da Zuleika com o de um ser humano. Ninguém merece, disse seu pai orangotango.
A partir daí, ela foi rejeitada e expulsa do país. Sobreviveu ganhando uns trocados atuando como a macaca Monga, em circos e feiras de automóveis, até que num fatídico dia um garotinho incauto morreu de susto ao vê-la. Perseguida por fanáticos de toda ordem, crentes que Zuleika era a versão feminina do demo, foi pega e, sem julgamento, condenada a ser queimada vivinha em praça pública, para regozijo daquela crentaiada maluca. Mas antes de virar carvão, Zuleika foi estuprada por um bom cristão, que não viu maldade nenhuma no ato, até porque, acreditava ele, a tal nem gente era e, ainda por cima, iria morrer mesmo.
Acontece que Zuleika, contrariando todas as leis da física, ressurgiu dos mortos e apareceu, sabe-se lá o motivo, aqui na Ilha dos Aterros. Pra azar seu, aquele sentimento preconceituoso da Idade Média ainda existe, e muito mais do que se imagina, nessa Ilha. Por isso, Zuleika aparece em locais escuros e enfumaçados e em ruas suspeitas do centro velho da cidade.
Muita gente pensa que Zuleika é travesti. Mas não é. É mulher mesmo e, segunda ela, e alguns testemunhos, tem clitóris avantajado. No seu caldeirão, criado pelo trauma de ter sido queimada viva, coloca fogo, como vodu, em papeizinhos com o nome de seus desafetos. Dizem que os mesmos sentem azia, má-digestão e falam asneiras em público quando isso acontece, o que faz supor que quase todo político é desafeto de Zuleika
Traumatizada, está grávida desde o incidente com o cristãozinho na Idade Média, mas não consegue parir. Comentários maldosos apontam que escondeu o filho no bairro Agronômica, mas está grávida de novo de um tal Bibico, visto regularmente nos inferninhos onde ganha seu sustento.
Outra teoria confirma que Zuleika é apenas um espírito que baixa no ator Paulo Vacilescu, vulgo Paulão, o que tem a ver com o fato de que a ex-macaca não é mesmo traveca, até porque seria o primeiro espírito transexual da desconhecida, submersa e fora dos eixos “sociais” dessa cada vez mais marginalizada vida cultural da Ilha de Nossa Senhora dos Aterros.
Por sorte, Zuleika Zimbábue tem fãs suficientes para que ela não precise sobreviver da insensatez dos fundos de apoio à cultura do Estado, pensado por quem jamais é visto em teatros, cinemas, livrarias ou qualquer coisa que se possa chamar de cultura. Para quem quiser conhecer melhor, vez ou outra ela se junta com uns rapazes sutilmente chamados de Confirmados e faz shows relâmpagos por aí, ou num tal de Blues Velvet onde entrevista um que outro artista e responde todas as dúvidas sexuais dos quem ainda têm dúvida. Ao ver qualquer nota escondida sobre as aparições de Zuleika vá vê-la, e sua vidinha de Idade Média nunca mais será a mesma.

15 de setembro de 2007

E esse modelo de representatividade?

É preciso ir às raízes antes de analisarmos um fato político para não corremos o risco de ficar na superfície. Mas a sociedade ainda corre léguas das raízes, e por isso vive nessa mediocridade intelectual e política que faz doer os ossos. A superfície é mais fácil de comentar e criticar, porque basta dizer que tal fato político é um atentado contra a moral, etc. No caso político recente, mais do que imaginar ser um absurdo a não-cassação do senador Renan Calheiros, é preciso antes fazer algumas perguntas.

A primeira é questionar se a população acredita ser esse modelo de representatividade o ideal. Se não crê como sendo, porque permite que ele funcione dessa forma? Além do mais, o senador (e não custa lembrar um pouco de história), foi ministro do governo Collor, o mesmo que foi expulso da presidência por uma série de irregularidades. Mas não dá pra esquecer que, antes de falar mal do resultado político da abstenção do presidente do Senado, é preciso reconhecer que Renan foi eleito pelo povo alagoano que sabia muito bem de sua origem (se não é possível fazer um julgamento jurídico) política, que é a mesma que sustentou a ditadura militar, e a mesma do ex-presidente Fernando Collor, hoje senador eleito da República.

Há toda uma geração de eleitores que não tem conhecimento algum da história política do país. É correto que se vote sem consciência? É, todos sabemos e queremos que sim. Porém, a democracia sem educação é tão perniciosa quanto a ditadura. Não podemos reclamar de senadores que absolvem um par envolvido em falcatrua se quem os elegeu, tanto o réu quanto os que os absolveram, fomos nós. Por isso, o problema primeiro é debatermos se este é ainda o modelo ideal de representatividade.

Indo mais às raízes, apenas para fazer uma analogia local, a reeleição do governador Luiz Henrique da Silveira é igualmente emblemática. Depois de ter construído o maior cabide de empregos do mundo, que são as secretarias regionais (pois se gasta mais com comissionados mal preparados do que com investimentos públicos necessários), depois de mexer para muito pior no sistema de investimento à cultura sem jamais ter conversado com aqueles que criam (certamente por medo de ouvir o que não quer), depois de ter se metido em escândalos gravíssimos como o caso Vera Fischer (que o Ministério Público ainda investiga) e o escândalo da borracharia de estrada que montava um esquemão para investir no Carnaval carioca, depois do escândalo do balé Bolshoi, não só judicial, mas um crime de "lesa-estética", ainda assim o governador foi reeleito.

Portanto, os nobres senadores que absolveram um senador notadamente envolvido com ilicitudes na sua vida privada não são nem um pouco diferentes dos eleitores que reelegeram o governador. E ambos, agora, têm o direito de ir até o fim de seus mandatos, porque o que tem que ser transformada é a mentalidade coletiva e a educação do povo brasileiro e de sua classe média que navega sem saber quem, como, ou por quê são governadas.

Do mesmo modo, toda a sociedade brasileira crê como sendo absurda a imunidade política, mas não é muito estranho que ela ainda exista? O julgamento de Renan Calheiros, assim como a reeleição de Luiz Henrique, foi político. O que temos que mudar é essa tacanha mentalidade política do brasileiro, ainda preconceituosa, deseducada, sem conhecimento histórico, e pautada pela mediocridade. Se não mudarmos isso, não tem muito sentido reclamar.

8 de setembro de 2007

Não quero pátria

O escritor russo Leon Tolstói disse que o patriotismo é tão nocivo como sentimento humano quanto é estúpido como doutrina, e Millôr Fernandes, parodiando o lingüista e escritor Samuel Johnson, que havia dito bem anteriormente que o patriotismo é o último refúgio do canalha, escreveu que a pátria é o primeiro refúgio do canalha.

Ontem, 7 de setembro, os brasileiros, considerados patriotas de chuteira, descansaram em mais um feriado para comemorar o Dia da Pátria. De minha parte, sou alinhado ao Millôr e a Tolstói, e me considero um despatriado. Não tenho a menor intimidade com esse sentimento quase patético de amor a uma coisa que, na teoria, não é nada, porque não tenho amor maior ou menor a um dito brasileiro - só porque nasceu no mesmo território imaginário que eu - do que a um cidadão que nasceu no Zimbábue. Ele é tão humano quanto eu, e se eu acreditar numa coisa apenas retórica chamada Brasil, a humanidade do outro se esfacela.

Só existem guerras porque alguém inventou essas linhas imaginárias que dividem territórios onde, para lá devem viver muçulmanos, para cá, judeus, a Leste, católicos, e, a Oeste, sabe-se lá que outro tipo de homem carregando que outro tipo de crença.

Aos nove anos de idade, única vez em que desfilei numa parada de 7 de setembro, quis desaparecer de vergonha. Não compreendia o sentido daquelas pessoas me olhando, sorrindo por uma pátria, cujo presidente era um ditador, acenando bandeirinhas que escondiam na ingenuidade verde-amarela a crueldade e a estupidez de uma guerra civil surda, a mando de outra pátria, chamada Estados Unidos da América.

Pelo conceito abstrato de pátria, jovens soldados norte-americanos matam civis, mulheres e crianças no Iraque, outra pátria que se defende a qualquer custo, como podem, de um invasor que quer roubar uma de suas riquezas, o petróleo, a se aproveitar do espírito patriótico dos jovens soldados. Que outro motivo teria um jovem para matar?

Se não há armas químicas, o que já era um mote furado - pois o país chamado Estados Unidos é o único que pode ter armas nucleares e químicas - o que aqueles soldados fazem lá, morrendo e matando gente? Por causa de um sentimento torpe, baseado em linhas imaginárias e um ódio gerado pela diferença. A pátria é o alimento do preconceito, porque o outro, aquele vizinho que mora do outro lado da linha imaginária, só porque tem outra cor ou olho puxado ou tem cabelos e barbas longas, deve ser eliminado. Se isto não for insanidade coletiva, não posso imaginar o que possa ser.

No próximo dia 11, serão lembrados no mundo todo, e nos Estados Unidos com mais "patriotismo", seis anos do ataque às torres gêmeas em Nova York, quando uma dezena de suicidas, por amor à pátria e a Maomé (uma junção, religião e política, ainda pior do que o patriotismo solitário), decidiu parodiar a bíblica história de David e Golias e sacrificar civis que não escolheram estar na guerra.

Por isso, sou como o compositor baiano, Caetano Veloso, que canta: "Minha pátria é minha língua, eu não quero pátria, tenho mátria, e quero frátria".

1 de setembro de 2007

Favor não atirar nos estudantes

Da trajetória (digamos, por enquanto, "normal") de um ser humano que consegue escapar com vida, ainda que ferido, de balas perdidas, impostos jogados na lata do lixo, burrice coletiva, problemas no fundo olho, micoses, motoristas bêbados, comida estragada, a parte chamada adulta, que vai dos 30 aos 60, mais ou menos (sei que há controvérsias) é a mais reacionária de todas as poucas restantes (infância, adolescência e velhice).

O ser humano adulto é um mala de plantão, um moralista incorrigível. Deixa de ser o rebelde adolescente marxista (alguém conhece outro filósofo que tenha feito uma leitura tão precisa do capitalismo, e o fez na juventude, do que o jovem Marx?) para ser um sujeito amargurado, com opinião formada sobre tudo, tirada dos pastiches da revista Veja e do Jornal Nacional. O sujeito quando jovem tem a coragem de mudar o mundo, ainda que não mude. Mas vai às ruas pedir por uma vida justa, uma educação decente, um transporte público que funcione, defendendo, inclusive, os adultos que perderam a coragem de fazer o mesmo e ainda reclamam do jovem que o defende.

O adulto, depois que atinge o que ele considera como sendo seu status social, depois que deixa de beber vodka pra tomar uísque oito anos, ao incitar a violência contra jovens que o defende, está, sem talvez perceber, atirando em si próprio. Mas é normal essa cegueira, esse respeito súbito ao medo: "miedo de subir, miedo de bajar", como canta o uruguaio Jorge Dexler. Por sorte, logo um adulto fica velho e os velhos voltam a perder o medo e se tornam revolucionários novamente.

Por isto, caro policial, prezado jornalista, simpático adulto, juiz moralista, você mesmo, que pensa ser o mercado a salvação do mundo, que morre de medo de dizer o que sente e pensa, que abandonou o caderninho de poemas da juventude, você, prezado policial, carrancudo general, por favor, relaxem, vão conhecer mais sua própria história, curta mais o sol na pele, não vá hoje ao trabalho e não peça desculpas, diga que não pode ir e pronto. Ou você se julga tão importante assim que por sua falta o mundo subitamente deixará de girar?

Foram os adultos que inventaram o relógio e a palavra medo. E sobre nossos túmulos, disse o jovem poeta Drummond, nascerão flores amarelas e medrosas. Aliás, os poetas só são interessantes quando jovens, depois se transformam em versejadores burocratas, com medo de romper com a linguagem prosaica dos cálculos, dos horários, dos compromissos que não levam nada e ninguém a lugar nenhum.

Viva a preguiça, viva a malícia macuinaímica, abaixo os projetos mal alinhados com as revoluções necessárias, aquelas que levam a mudanças de paradigma e que deveriam acordar os homens dessa alucinação coletiva em crenças por si mesmo inventadas. Pela institucionalização do Apagão, únicos dias nessa ilha dos aterros onde os vizinhos tiveram tempo de se conhecer, onde não havia luz nem motores elétricos ligados, nem e-mails para responder, porém, ninguém foi menos feliz por isso.

Parem com essa mania de chamar a polícia para tirar os alunos da escola. Afinal, os adultos brigam tanto com os filhos para freqüentarem as escolas, que quando eles decidem ficar lá, acham ruim. Vá entender esses adultos. Por sorte, ser jovem não tem idade, por mais contraditório que isso possa parecer. Por isso, por favor, não atirem nos estudantes.

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...