22 de dezembro de 2007

Bactérias não acreditam em Papai Noel

Existem 30 milhões de espécies no planeta. Calcula-se que esse número representa apenas 1% daquelas que já existiram e foram extintas. Mais ou menos 3 bilhões já passaram por aqui, incluindo a mais famosa e visível de todas, a dos dinossauros. O ser humano, nesse parque de diversões que muitas vezes parece sonho ou brincadeira, é apenas uma entre todas. Segundo o doutor Dráuzio Varella, em seu livro Borboletas da Alma (de onde muitos das informações aqui expostas foram extraídas), a espécie humana é bem recente, se comparada com a maioria das bactérias, por exemplo. A bactérias, invisíveis ao olho humano, infinitesimalmente menores que nós, são capazes de causar enormes estragos, e chegaram bem antes, inclusive dos gigantescos dinossauros. E ainda por cima sobreviveram quando alguma coisa ainda misteriosa (apesar das evidências de um enorme meteoro) dizimou os simpáticos gigantes da face da terra. No resumo da ópera, a vida na terra existiu, com bactérias, dinossauros, baratas e outros tipos menos conhecidos, durante milhões de anos sem a espécie humana. Sinal inequívoco de que vida não é apenas uma dádiva humana, e que o planeta existiu, existe e existirá independente da presença ou não de humanos.

Recentemente, cientistas descobriram que os ratos têm a mesma quantidade de genes que os seres humanos. Para os ratos, isso não faz a menor diferença, pois eles continuam a roer independentemente de terem ou não o conhecimento sobre sua importância genética. Para nossa espécie é um sinal de que já está mais do que na hora, depois de tantos argumentos e fatos, de compreender que somos apenas mais um dos habitantes do planeta, igual aos roedores, por exemplo, com seus 30 mil genes.

O intrigante nessa história, principalmente àqueles que acreditam que alguém criou tudo isso, incluindo o ser humano, sob sua imagem e semelhança, é tentar compreender o motivo pelo qual o possível criador demorou tanto tempo para criar a espécie humana. Teria ele o poder da metamorfose, só para lembrar de Ovídio, e ter criado, antes de nós, outras experiências de vida, e, por essa teoria, à sua imagem e semelhança? Tal criador teria sido semelhante aos dinossauros, bactérias e ratos, até crer que parecer-se ao homem (no sentido amplo, da espécie) seria mais elegante e cômodo? Somos os únicos animais que inventamos uma cultura diferente da natureza. E isso é fascinante, porque ao criarmos cultura contrária à natureza estamos também reinventando nossa própria natureza. E junto, a natureza dos outros animais, porque não há como construir sem interagir, e, infelizmente, não há como interagir sem destruir. E é isso que a espécie humana tem feito, com o propósito básico igual aos dos outros bichos: perpetuar a espécie. Mas para perpetuar, com toda essa inteligência, é preciso também destruir. Contradição existente apenas na nossa espécie, até porque só em nós existe o conceito de contradição.

Prédios enormes, máquinas que lavam roupas, aparelhos que liquidificam frutas, brincos, panelas, a raiz quadrada, a palavra, os discos de guardar dados, os próprios dados, as folhinhas de calendário que anunciam um ano a mais, mas que na ausência de cultura nada significam; as latas de azeite, o avião. Nada disso nos faz melhor que os outros animais. Apenas nos tornam mais arrogantes. E toda essa cultura ainda não nos faz biologicamente pior ou melhor do que uma bactéria, esses seres que sabiamente não precisam crer em Papai Noel. Talvez resida nesse fato sua enorme longevidade no planeta.

9 de dezembro de 2007

Um senhor tão bonito

A idéia de tempo é humana porque existem as palavras, e entre elas a palavra tempo. Santo Agostinho disse que se lhe perguntassem sobre o tempo saberia o que era, mas não saberia dizer, porque existem coisas que a palavra não dá conta. Sentimos o sinal dele na pele, nos ossos, e no acúmulo de experiências. É engano crer que acumulamos memória. Tal tarefa, deixamos para Funes, o memorioso, personagem de Jorge Luis Borges, escritor que fez do tempo uma de suas preocupações. Funes tinha uma memória tão prodigiosa que sequer podia levantar-se da cama. Quando falavam a palavra "árvore", que para nós, desmemoriados do tempo, surge a imagem genérica, ou, quiçá de um pinheiro solitário, Funes lembrava de todas as árvores, uma por uma, e de todas as folhas que faziam parte de sua memória.

A memória, por sorte, à medida que envelhecemos, torna-se necessariamente seletiva. Somos capazes de lembrar da infância, porém esquecermos o cardápio do jantar de ontem. Pelo mesmo motivo, o cérebro guarda mais fatos agradáveis do que desagradáveis.

O tempo, esse senhor tão bonito, não cabe em nenhuma das três palavras que inventamos para tentarmos falar dele: o passado, o presente, o futuro, a não ser como taxonomia de coisas que acreditamos descrever, no máximo. Mesmo assim, tão impalpável sua "inclassificação", que, muitas vezes, mal sabemos se determinado fato aconteceu, está acontecendo ou se queremos que um dia aconteça.

Quantos sonhos confundidos com realidade. Que coisa é essa que não se alcança com a mão? Que se esvai no milésimo de segundo após a palavra dita? Que se quer e não se tem? Que se mescla e afirma não mais do que na mente de quem vive, porque o tempo definitivamente não existe para os que não conhecemos, ou que não vemos mais.

O tempo: só por ele sentimos o banzo que quase se materializa um passado quando sentimos um cheiro, ou quando olhamos uma casa que sequer conhecemos por dentro, mas parece estar na retina desde sabe-se-lá quando, porque o tempo mesmo não tem mesura real, apenas uma abstrata e ínfima desrazão, analisada de um ponto de vista único daquele que tenta de forma inútil descrevê-lo numa página de jornal.

Matar o tempo, passar o tempo, recuperar o tempo perdido. Frases de efeito retórico, nada mais, porque tempo não se deixa passar, nem se deixa morrer, nem se perde. Mesmo fazendo palavras cruzadas, não sentimos as estrelas se afastando desde a mais remota explosão que nos deixou no meio do caminho em forma de gente. Como ser assim, tão só, pergunta Vitor Ramil, sob a estrela, medida única e incontável do tempo.

O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel, disse Platão. O tempo não pára, disse Cazuza. O tempo, essa mania humana de querer saber em cinco letras o que não se pode saber. O tempo é o pouco espaço disponível entre o primeiro e o último choro. O tempo cabe menos na palavra tempo do que na palavra etecétera. O tempo nem nada leva nem nada traz.

1 de dezembro de 2007

FORMIGAS

Um copo vazio – que antes de ficar nessa condição (ainda que cheio de ar) esteve até a borda com Cointreau –, deixado ali por dias e dias, misturado a papéis, canetas, livros e uma bola para exercícios de fisioterapia na mão, atraiu muitas formigas, bem miudinhas.
É claro que o cronista pensa em referências, pois sabe que a roda já foi inventada e o que resta a ele é fazer a homenagem devida a seus inventores e, vez ou outra, tentar mudar o desenho delas. A primeira das referências é o poeta Mário Quintana, que, ao ver uma formiga atravessando a página em branco compreendeu o frêmito e todo sentido da vida. A segunda vem da novela Um copo de cólera, de Raduan Nassar, quando o protagonista tem a mais furiosa e emblemática luta com tais insetos da história da literatura, pelo menos da que conheço. A terceira é a auto-referência, pois já escrevi certa vez sobre a arte de cachimbar formigas, quando a avó, ao ver o neto ali na cozinha sem fazer nada, e perguntando coisas sem respostas lógicas, mandava o rapaz cachimbar formigas. Talvez por isso ele fuma até hoje uns cachimbos, em busca de formigueiros para encher suas galerias de terra com o fumo de seu tabaco.
Não pretendo eu aqui brigar com formigas, nem mesmo cachimbá-las. Que sei delas? Que quanto menor, talvez, mais enchem a paciência? Sobem na mão e literalmente formigam. Deveria, inclusive, agradecê-las por se darem a temas recorrentes e assuntos para mais um sábado, e por fazer com que eu saiba um pouco mais desses seres tão organizados, como contam biólogos e zoólogos em geral, mesmo que sua ordem e organização jamais venham me convencer de que um dia eu mesmo devo ser como uma formiga.
Uma das lições aprendidas foi saber – fato relevante para a convivência hamoniosa entre dois bichos tão diferentes: formigas e humanos – que esses bichinhos adoram Cointreau. Não sei se antes ou depois das refeições. Tentarei, da próxima vez, observar melhor e ver de onde elas vêm antes de se refestalarem no resto de sabor e do cheiro de laranja do copo vazio.
Tentei, também, saber se elas ficaram ou não um pouco bêbadas com o resto de licor. Mas isso é impossível de perceber, porque naturalmente andam apressadas, e padecem de senso objetivo de direção. Elas andam cambaleantes, seja antes ou depois do Contreau, porém – talvez aí resida o frêmito descoberto por Mário Quintana – elas sempre sabem onde querem ir. Diferente dos humanos, bêbados ou não, que sempre vão a um lugar com aparente objetividade, em linha quase reta, porém não sabem ainda quem são, de onde vieram e para onde vão.
Formigas talvez não pensam a que vieram nesse mundinho esquisito. Mas sabe-se que, ao contrário dos humanos, se protegem coletivamente de ataques de seus predadores como eu, que as cato a cada vez que me formigam os braços, a mesa e o teclado. Humanos, ao contrário, destroem-se a si mesmos e vivem cada um por si, quando pensam que são diferentes; e puxam os sacos um dos outros, quando pensam que são iguais.

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...