26 de abril de 2008

  • Como viver junto

    Tomo esse título emprestado da reunião de notas das aulas que Roland Barthes proferiu no Collége de France entre 1976 e 1977. Duas questões me chamam a atenção. A primeira é sobre a forma como o ensaísta revela seu método de pensar. As anotações são estruturas quase mínimas de organizar uma idéia, em tese, dispersa nos escaninhos da memória para que, na hora em que esse pensamento tiver que sair da boca pra fora tenha um sentido razoável para o outro. Isso já é, de algum modo, uma tentativa de viver junto, pois ninguém anota algo para ser dito a si mesmo, ainda que seja "para si mesmo" confirmar o que quer dizer ao outro. A segunda é sobre a própria percepção da noção de viver junto.

    Barthes não comenta apenas o Viver Junto (e ele anota sempre em caixa alta), como em um primeiro momento pode se pensar, de uma relação conjugal ou amorosa. Também o faz, é claro. Ele relembra, inclusive, a história do mandarim, do seu livro "Fragmentos de um discurso amoroso", que esperou sei lá quantos anos pela amada. Um dia ele cansou de esperar, e, no seguinte, ela apareceu. Perderam-se assim um para o outro, por conta ninguém sabe do quê: de uma impaciência, angústia, descrença, ou mesmo um fastio da espera. Viver junto é principalmente viver sob o mesmo tempo, ainda que em lugares diferentes, como ser contemporâneo sem nunca se tocar ou se ver.

    Sigmund Freud não encontrou Karl Marx, mas em algum momento foram contemporâneos, viveram juntos sobre a Terra. Federico García Lorca encontrou Jorge Luis Borges em Buenos Aires, na viagem que Lorca fez à América. Viveram juntos mais do que Freud e Marx, apesar de, como reza a lenda, e quem conhece a literatura dos dois, terem se encontrado sem um gostar muito do que outro fazia.

    Um dos encontros mais incríveis da história talvez tenha sido o do ditador Joseph Stálin com o escritor H. G. Wells, autor do famoso Guerra dos mundos, que apavorou cidadãos norte-americanos nos anos 1930 na voz de Orson Welles. Numa conversa quase ríspida, dois modos de pensar a economia de um período onde o mundo se dividia ingenuamente entre capitalistas e proletariados são expostos. E os dois, mais do que podemos imaginar o que seja isso, viveram juntos, e ainda deixaram o registro expresso dessa vivência. É quase impagável o trecho onde textualmente Wells diz a Stálin: "Parece que sou mais esquerdista que o senhor, senhor Stálin". Noutro momento, Stálin reclama de Wells, dizendo: "O senhor parte do princípio de que todos os homens são bons. Eu, entretanto, não esqueço que há muitos homens maus". Fico aqui imaginando o que um homem como Stálin poderia compreender como sendo bondade, e se teria olhado para dentro de si mesmo e também ter se achado um sujeito "mau" por ter matado tanta gente.

    Querer o bem do outro, sem que essa suposta "generosidade" seja aceita talvez seja a maior maldade que um ser humano possa fazer com outro, vivendo juntos - em qualquer sentido - ou não. Para viver junto é preciso antes de mais nada aceitação do outro tal e qual ele é ou pensa, desde que, claro, o outro não queira "seu bem" à força. Talvez muita gente viva junto no sentido mais conjugal do negócio, e sequer imagina que o outro, mais dia menos dia, pode te jogar pela janela, dizer adeus, enfim, te dar um tiro real ou metafórico. Vivemos juntos num planeta com 6,5 de indivíduos, mas as notícias cotidianas avisam que é como se não vivêssemos.

19 de abril de 2008

Lugares ocultos

Houve em algum canto do universo um lugar oculto, onde pude esconder-me, perceber a própria respiração, aquecer-me no calor do cobertor de penas que dali migrava, à noite, para as camas de colchão de molas. Havia, houve, houvera, não há mais. Era um armário embutido, com cinco partes, no fim de um corredor com quatro portas. Uma para cada quarto, devidamente sacralizados, cada qual com seus donos. O mais emblemático era o cômodo da avó e do avô, porque na parede havia um único quadro dizendo que a avó já havia garantido seu lugar no paraíso. Será por isso que ela se foi tão cedo?

Dali, além de esconder-me apenas para chamar a atenção, tarefa singular a filhos únicos e mimados, criava as teorias para o óbvio. Antes mesmo de alguma professora ensinar que no interior do corpo havia glóbulos brancos como soldados, aquele gurizinho já intuía. De dentro do armário, de tanto ouvir sobre as inúteis mortes na guerra do Vietnã, resolveu, certa noite, orar para que aquela carnificina acabasse. E acabou. Há fé suficiente nos meninos crentes para que as armas deixem de matar? Claro que não, nem no argumento pacifista fora de moda de um adulto que nem rezar não reza mais, mas crê e diz que as fábricas de armas são o maior símbolo da estupidez humana.

Dos lugares ocultos é que nascem as utopias, e quando eles são demolidos, vai junto a possibilidade de se pensar nas utopias. Utopia que se preste não pode existir, já avisa a sua etimologia. Mais do que o não-lugar, a utopia é o não-lugar-nunca. O lugar existe, sim, desculpem, mas apenas na memória que acredita poder projetar futuros, mesmo que eles não possam jamais ser projetados. Talvez desejados. É, desejados. Esse desejo aí é que eu o chamo utopia.

Do lugar oculto os meninos encontram fotografias antigas, onde todo mundo da sua vida é jovem. O que pensavam aqueles jovens, ele se pergunta, entre os cheiros de noites acordadas, suores, sonhos impolutos, desejos, restos de leite em pó, goiabada cascão, queijo serrano e bolacha Maria, todos roubados da seção reservada apenas às visitas.

Lugar oculto que se preze tem que ter fresta. Se daquele lugar ele se escondia do mundo, da mesma forma o contemplava, como no cinema. Da fresta, o olho persegue a empregada que entra e sai dos quartos, com baldes, panos úmidos, resmungos, e vez ou outra uma pausa para satisfazer meninos curiosos. Do lugar oculto, o menino foi muito feliz, foi sim, porque descobriu que gostava mesmo da aventura de ver o mundo passar.

Tempos depois, quando o menino nem era mais tão pequeno, assistiu acocorado, no meio da rua, ao lado do Zé da Piquita, as primeiras marteladas da destruição. Primeiro demoliram a varanda, depois a sala, a copa, chegaram aos corredores, entraram nos quartos e avançaram sobre o lugar oculto. O menino descobriu que nunca existiu o lugar, porque era embutido. A casa é que existia, e ela é que envolvia com madeira aquela enorme utopia chamada prateleira, onde não se guardavam pratos, mas sonhos. Por último, ficou apenas a banheira, sem teto, dando para o nada, um nada comprido, triste que só vendo.

O melhor lugar oculto nunca foi o armário embutido, mas o cérebro quando deixava de construir não-lugares e desligava do mundo apenas para ouvir a água do chuveiro bater na cachola. O mesmo que deu para o nada, e que não existe mais. Talvez nunca tenha existido.

12 de abril de 2008

Le lecteur de bréviaire - Carl Spitzweg

O leitor selvagem

Para Eve, pequena porém selvagem leitora.

O poeta Paulo Leminski cunhou a expressão "pensador selvagem" para descrever o cara que não tem vínculo do que produz com resultados pragmáticos e acadêmicos. Pensar sem ter que prestar exame, pesquisar sem ter que apresentar uma tese a uma banca, escrever sem ter que fazer citações, é o que faz um pensador selvagem. E estes, como já alertou o ensaísta Harold Bloom, quando se referiu aos "últimos intelectuais", lá no século passado, são cada vez mais raros. Do mesmo modo, eles são cada vez mais rejeitados pelas academias de louros e letras, como cantou Tom Zé, talvez o último pensador selvagem brasileiro.

Numa outra conversa, com o poeta e amigo, porém nem tão selvagem assim, Anísio Homem, falávamos da relação que cada um tem com suas leituras. E em algum momento, parafraseando o "cachorro louco" de Curitiba, achei que se existe um pensador descompromissado, deve existir também o leitor selvagem.

E o leitor selvagem é aquele que lê vários livros ao mesmo tempo. Sem existir quem o sabatine, larga o personagem que espera os bárbaros do Cootze lá no banheiro e parte para os ensaios sobre futebol do Eduardo Galeano sem a menor cerimônia. O pensador selvagem não lê a Ética de Durkheim para defender uma tese na Sociologia, mas porque tem interesse em saber o que outros seres humanos já escreveram sobre o tema. E se a leitura não é compatível com seu estado de espírito, de forma alguma ficará constrangido e nem pedirá desculpas a Durkheim por isso. Mas, prudente com sua própria curiosidade, deixará marcada a página na qual parou, para, quem sabe um dia, voltar a ele, o livro.

O pensador selvagem ama mais os livros de que seus conteúdos. Apalpa o objeto, lê das orelhas à quarta capa, os prefácios e as introduções. Ele lê, inclusive, o colofão, cada vez mais raros, como aqueles da antiga editora José Olympio, antes de ser vendida para um grande grupo, onde ficávamos sabendo, por exemplo, o centenário do autor tal, o cinqüentenário do fulano aquele. Inútil, talvez, mas me fazia gostar mais do livro.

O leitor selvagem não tem compromisso com a última página, nem com uma certa conclusão, ou sobre a moral da história, como as que acompanhavam algumas traduções das fábulas de La Fontaine. O leitor selvagem gosta mesmo é da tipografia do negócio, dos livros com letras graúdas e margens grandes. Ele tem admiração pela linguagem, pela clareza, pela boa tradução, pelo tipo de papel e até pela costura, de que forma foi feita. O leitor selvagem tem compromisso com sua própria liberdade de escolha, e não tem pudor em abandonar um livro, com o marcador anunciando a vigésima página e nunca mais voltar a sequer tocar nele. O leitor selvagem jamais faz anotações num livro ou o rabisca.

O leitor selvagem é um distraído. E o distraído, segundo Octávio Paz, não é aquele que se desorganiza segundo a lógica de um pragmatismo de mercado, do trabalho ou de uma ordem imposta por um sistema que ninguém sabe quem controla ou impõe suas regras. O distraído é aquele que nega o mundo tal e qual ele é, por isso se distrai cotidianamente dele, largando leituras pelos começos, comprando livros que talvez nunca venha a ler, mas que estará na estante por garantia. O leitor selvagem chega a confundir Machado de Assis com Leonardo da Vinci só porque têm, os dois nomes, o mesmo número de sílabas poéticas.

O leitor selvagem é um pândego, e tenho a impressão que o mundo anda carente deles.


Diário Catarinense, 12 de abril de 2008

5 de abril de 2008


A Primeira Missa no Brasil
Vitor Meirelles

A Primeira Missa

A exposição da tela Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles, no Museu de Arte de Santa Catarina, além da possibilidade de apresentar aos conterrâneos do pintor a famosa obra, suscita outros debates sobre arte, representação e seu significado na história.

Os livros de história do Brasil nos quais estudei quando guri, quando "ensinavam" a chegada dos portugueses (com forte teor patriótico e moral por causa da ditadura militar), "ilustravam" a relação dos indígenas com os invasores com o quadro de Vitor Meireles.

Realista e clássica, sem contar o conteúdo "conciliador", bastante apropriado para uma ditadura que negaria qualquer discórdia entre índios e portugueses, a obra coube como uma luva para ilustrar o período. Qualquer garoto ou garota dessa época, e não sei se hoje ainda ela é usada com este propósito, acreditaria que a primeira missa rezada em solo tupiniquim aconteceu bem daquela forma.

É claro que a tela em si não tem culpa alguma de seu uso, ainda que o artista tenha voltado as costas para o modernismo que nascia, e que negava o realismo pretensamente histórico, figurativo e contemplativo. Vitor fez o que achava que tinha que fazer e pronto. O que nos resta, além de admirar a obra, é refletir sobre a representação que a arte o tempo todo tenta fazer, seja da natureza, seja da história, e qual forma os artistas contemporâneos escolhem para tal. Quando vi a primeira vez uma reprodução da tela, ligada até o umbigo com o que a professora "ensinava" sobre a chegada dos portugueses, não liguei as datas. Acreditei mesmo que Vitor estava lá, tal e qual um fotógrafo, naquele acontecimento histórico. Normal para o garoto caipira que talvez ainda more em mim.

Até hoje me pergunto se foi omissão deliberada da professora em não avisar que o artista havia nascido mais de trezentos anos depois do fato e que, é óbvio, ele havia imaginado a cena. Talvez até tivesse gostado mais dele. Seria ainda, mais que uma lição sobre história, o princípio de um debate necessário sobre arte, pois, de alguma forma, Vitor não pintou suas angústias ou seu tempo, como é comum que se pense de artistas. Pelo menos não na Primeira Missa. Mas não podemos exigir de professores de história que pensem sobre arte e representação, apesar de eu crer que estão intimamente interligadas.

É curioso que sessenta anos após Victor retratar a famosa cena, Marcel Duchamp pintou um bigode numa réplica da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci. Esse ato, que colocou a pintura em xeque (o que pintar depois?) foi o mais emblemático da história da arte, assim como o Modernismo, que voltou as tintas para a arte em si, criando mil modismos e quase fazendo com que, para ser artista, fosse necessário representar a própria arte, como se a natureza e a cultura já estivessem esgotados para tal. Mas essa metalinguagem, de alguma forma, era também uma representação da cultura.

Muitos críticos reprovam o artista figurativo por ser "velho", e louvam performances e abstracionismos apenas porque são "modernos". Mas não podemos esquecer que Duchamp já pintou os bigodes na Gioconda faz muito mais que sessenta anos, quase oitenta, para ser preciso. A estas alturas, não é o fato de ser figurativo, performático, realista ou o que mais, que faz de uma obra algo que seja importante. Mas também, ainda bem, não saberia dizer agora o que é. Preciso ver de perto a Primeira Missa, talvez ela me ensine algo que ficou perdido há muito tempo, entre a realidade histórica e a imaginação do artista.

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...