19 de abril de 2008

Lugares ocultos

Houve em algum canto do universo um lugar oculto, onde pude esconder-me, perceber a própria respiração, aquecer-me no calor do cobertor de penas que dali migrava, à noite, para as camas de colchão de molas. Havia, houve, houvera, não há mais. Era um armário embutido, com cinco partes, no fim de um corredor com quatro portas. Uma para cada quarto, devidamente sacralizados, cada qual com seus donos. O mais emblemático era o cômodo da avó e do avô, porque na parede havia um único quadro dizendo que a avó já havia garantido seu lugar no paraíso. Será por isso que ela se foi tão cedo?

Dali, além de esconder-me apenas para chamar a atenção, tarefa singular a filhos únicos e mimados, criava as teorias para o óbvio. Antes mesmo de alguma professora ensinar que no interior do corpo havia glóbulos brancos como soldados, aquele gurizinho já intuía. De dentro do armário, de tanto ouvir sobre as inúteis mortes na guerra do Vietnã, resolveu, certa noite, orar para que aquela carnificina acabasse. E acabou. Há fé suficiente nos meninos crentes para que as armas deixem de matar? Claro que não, nem no argumento pacifista fora de moda de um adulto que nem rezar não reza mais, mas crê e diz que as fábricas de armas são o maior símbolo da estupidez humana.

Dos lugares ocultos é que nascem as utopias, e quando eles são demolidos, vai junto a possibilidade de se pensar nas utopias. Utopia que se preste não pode existir, já avisa a sua etimologia. Mais do que o não-lugar, a utopia é o não-lugar-nunca. O lugar existe, sim, desculpem, mas apenas na memória que acredita poder projetar futuros, mesmo que eles não possam jamais ser projetados. Talvez desejados. É, desejados. Esse desejo aí é que eu o chamo utopia.

Do lugar oculto os meninos encontram fotografias antigas, onde todo mundo da sua vida é jovem. O que pensavam aqueles jovens, ele se pergunta, entre os cheiros de noites acordadas, suores, sonhos impolutos, desejos, restos de leite em pó, goiabada cascão, queijo serrano e bolacha Maria, todos roubados da seção reservada apenas às visitas.

Lugar oculto que se preze tem que ter fresta. Se daquele lugar ele se escondia do mundo, da mesma forma o contemplava, como no cinema. Da fresta, o olho persegue a empregada que entra e sai dos quartos, com baldes, panos úmidos, resmungos, e vez ou outra uma pausa para satisfazer meninos curiosos. Do lugar oculto, o menino foi muito feliz, foi sim, porque descobriu que gostava mesmo da aventura de ver o mundo passar.

Tempos depois, quando o menino nem era mais tão pequeno, assistiu acocorado, no meio da rua, ao lado do Zé da Piquita, as primeiras marteladas da destruição. Primeiro demoliram a varanda, depois a sala, a copa, chegaram aos corredores, entraram nos quartos e avançaram sobre o lugar oculto. O menino descobriu que nunca existiu o lugar, porque era embutido. A casa é que existia, e ela é que envolvia com madeira aquela enorme utopia chamada prateleira, onde não se guardavam pratos, mas sonhos. Por último, ficou apenas a banheira, sem teto, dando para o nada, um nada comprido, triste que só vendo.

O melhor lugar oculto nunca foi o armário embutido, mas o cérebro quando deixava de construir não-lugares e desligava do mundo apenas para ouvir a água do chuveiro bater na cachola. O mesmo que deu para o nada, e que não existe mais. Talvez nunca tenha existido.

2 comentários:

Raquel Stolf disse...

oi fábio, teus textos sempre instigam prateleiras de pensamentos. fiquei pensando nas banheiras ilhadas, no nada comprido, nas utopias de cada dia. lembrei de um texto meu, que diz (que é tb um áudio): "um homem vive em armários. sai de um armário e entra em outro."
um abraço, raquel stolf.

Anônimo disse...

lindo!

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