12 de abril de 2008

Le lecteur de bréviaire - Carl Spitzweg

O leitor selvagem

Para Eve, pequena porém selvagem leitora.

O poeta Paulo Leminski cunhou a expressão "pensador selvagem" para descrever o cara que não tem vínculo do que produz com resultados pragmáticos e acadêmicos. Pensar sem ter que prestar exame, pesquisar sem ter que apresentar uma tese a uma banca, escrever sem ter que fazer citações, é o que faz um pensador selvagem. E estes, como já alertou o ensaísta Harold Bloom, quando se referiu aos "últimos intelectuais", lá no século passado, são cada vez mais raros. Do mesmo modo, eles são cada vez mais rejeitados pelas academias de louros e letras, como cantou Tom Zé, talvez o último pensador selvagem brasileiro.

Numa outra conversa, com o poeta e amigo, porém nem tão selvagem assim, Anísio Homem, falávamos da relação que cada um tem com suas leituras. E em algum momento, parafraseando o "cachorro louco" de Curitiba, achei que se existe um pensador descompromissado, deve existir também o leitor selvagem.

E o leitor selvagem é aquele que lê vários livros ao mesmo tempo. Sem existir quem o sabatine, larga o personagem que espera os bárbaros do Cootze lá no banheiro e parte para os ensaios sobre futebol do Eduardo Galeano sem a menor cerimônia. O pensador selvagem não lê a Ética de Durkheim para defender uma tese na Sociologia, mas porque tem interesse em saber o que outros seres humanos já escreveram sobre o tema. E se a leitura não é compatível com seu estado de espírito, de forma alguma ficará constrangido e nem pedirá desculpas a Durkheim por isso. Mas, prudente com sua própria curiosidade, deixará marcada a página na qual parou, para, quem sabe um dia, voltar a ele, o livro.

O pensador selvagem ama mais os livros de que seus conteúdos. Apalpa o objeto, lê das orelhas à quarta capa, os prefácios e as introduções. Ele lê, inclusive, o colofão, cada vez mais raros, como aqueles da antiga editora José Olympio, antes de ser vendida para um grande grupo, onde ficávamos sabendo, por exemplo, o centenário do autor tal, o cinqüentenário do fulano aquele. Inútil, talvez, mas me fazia gostar mais do livro.

O leitor selvagem não tem compromisso com a última página, nem com uma certa conclusão, ou sobre a moral da história, como as que acompanhavam algumas traduções das fábulas de La Fontaine. O leitor selvagem gosta mesmo é da tipografia do negócio, dos livros com letras graúdas e margens grandes. Ele tem admiração pela linguagem, pela clareza, pela boa tradução, pelo tipo de papel e até pela costura, de que forma foi feita. O leitor selvagem tem compromisso com sua própria liberdade de escolha, e não tem pudor em abandonar um livro, com o marcador anunciando a vigésima página e nunca mais voltar a sequer tocar nele. O leitor selvagem jamais faz anotações num livro ou o rabisca.

O leitor selvagem é um distraído. E o distraído, segundo Octávio Paz, não é aquele que se desorganiza segundo a lógica de um pragmatismo de mercado, do trabalho ou de uma ordem imposta por um sistema que ninguém sabe quem controla ou impõe suas regras. O distraído é aquele que nega o mundo tal e qual ele é, por isso se distrai cotidianamente dele, largando leituras pelos começos, comprando livros que talvez nunca venha a ler, mas que estará na estante por garantia. O leitor selvagem chega a confundir Machado de Assis com Leonardo da Vinci só porque têm, os dois nomes, o mesmo número de sílabas poéticas.

O leitor selvagem é um pândego, e tenho a impressão que o mundo anda carente deles.


Diário Catarinense, 12 de abril de 2008

6 comentários:

Anônimo disse...

lindo texto fabio! se nunca me encontrei numa definição, do leitor selvagem achei uma ótima.
ducaralho!
abração,
pedro mc

Beatriz disse...

Belíssimo blog. Marx dizia que seus únicos escravos eram livros. Os meus ~sao livros-escravos são todos rabiscados. E eu me considero leitora selvagem. Discordo de você apenas neste ponto: leitor selvagem risca e raboisca o livro. Melhor dizendo: grafita!

Dennis Radünz disse...

sim, senhor Brüggemann, eu sou um leitor selvagem, exceto quando visto a sobrecasaca típíca dos mortos de drummond e discuto políticas públicas de cultura etc. etc. no mais, sou um consumado pândego, minhas performances em bares é que não têm sido compreendidas. muito selvagens.

Adriane Canan disse...

teu amigo de Lages, o Lota, mandou um abraço.
tenho uma porção de livros que olham pra mim todos os dias...já impacientes, eu acho...esperando pelo menos um toque...
beijo!

Anônimo disse...

também concordo com a (ou o?) compulsão diária. risco e rabisco meus livros selvagemente (existe isso?) quem não rabisca livro é editor. os que publico jamais rabisquei. que dilema, hein?

beijo do vini

ítalo puccini disse...

Muito boa a reflexão que você propõe neste texto, Fábio!

Já utilizei esta imagem no meu blog. Aqui: http://um-sentir.blogspot.com/2008/02/o-ler-2-ser-leitor.html

Considero-me um leitor selvagem (a partir dos pressupostos que você aponta). Identifico-me com isto: "O pensador selvagem ama mais os livros de que seus conteúdos". Mas sou um leitor selvagem que rabisca livros, sim.

Também sinto a carência de leitores selvagens. Tudo anda robotizado e pragmático demais, até a (pouca) leitura existente de livros.

abraços,
Ítalo.

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