25 de fevereiro de 2011

Turismo de coliforme fecal

Atenção, atenção, turista. Venha para a Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, o melhor lugar do mundo para se visitar, em qualquer estação. Conheça as famosas placas “Praia imprópria para banho” e fique apenas na vontade de mergulhar. Não precisa trazer roupa de banho, a não ser que queira pegar uma virose, uma das grandes atrações desse verão. Ainda por cima, você poderá presenciar in loco os coliformes fecais mais visíveis do planeta.

Aqui, patrimônio histórico não tem vez. Assista ao tombamento literal de uma cidade. Veja também os assassinatos de jovens ligados ao tráfico, na média de um por dia. Um dos atrativos mais emocionantes e tradicionais é esperar quase 40 minutos no ponto de ônibus, quase sempre lotado, afinal, você está vindo para uma das cidades com a pior mobilidade urbana do mundo. Ah, não vá embora antes de ser roubado, atropelado ou, se tiver sorte, sofrer um emocionante sequestro relâmpago.

Venha ver as belas praias onde a inteligência humana joga lixo, esgoto e pedras no mar. Venha ver os belos monumentos a céu aberto, como o da Polícia Militar e o da Maçonaria, obras primas da arte local. Ah, não deixem de visitar o belíssimo merdário, uma obra genial da arquitetura ilhoa, bem na cabeceira da ponte. De brinde, dependendo da direção do vento, você ainda sente o cheirinho intestinal da elite local.

Venha, venha ver os aterros mais lindos da natureza, onde as árvores são fantasmas e as pessoas não precisam caminhar, atividade, aliás, do século passado. Em Nossa Senhora dos Aterros você poderá presenciar um dos maiores espetáculos da falta de senso coletivo. A cada dez automóveis que passam, nove tem apenas uma pessoa. Pedale pelas ciclovias mais seguras do mundo, onde você fica, veja só, a apenas trinta centímetros dos automóveis, numa aventura alucinante.

Venha assistir ao vivo o maior descaso praticado contra a natureza. Venha, mas venha logo, antes que esse grande espetáculo de estupidez, descaso e ignorância política afunde no mar para sempre, bem juntinho aos coliformes fecais da Lagoa da Conceição.

18 de fevereiro de 2011

TEOGONIAS

Só me dei conta de que estava quebrando uma tradição secular – ainda que apenas da minha vidinha íntima e particular – quando minha filha, aos três anos de idade, pediu que eu lhe contasse mais uma vez a história do Big Bang. E lá se vão quase duas décadas desse pedido que, sei lá o motivo, me veio à cabeça agora. A maioria dos pais conta, ao invés de uma gênese físico-química, como a minha, suas teogonias tradicionais. No caso dos católicos e judeus, a história de Adão e Eva. No Egito antigo, papiros reportam sobre Mat, a deusa do céu, e Geb, o deus da terra, algumas vezes separados pelo deus do ar, a quem eles chamavam de Shu.

Indígenas das mais variadas etnias atribuíam poderes divinos aos fenômenos naturais. Na Polinésia existe uma estátua que representa o deus Tangaroa, que carrega nas costas o corpo de todos os seres do mundo. Para os navajos, tribo norte-americana, que tanto vimos dizimada por caras-pálidas nos filmes de caubói, a terra era representada por quatro montanhas, cada qual um canto do mundo, e o coiote era quase um deus.

Os gregos, antes de serem convertidos ao cristianismo, eram politeístas. Cada um dos deuses tinha uma determinada tarefa, mesmo que no alto de uma montanha vivesse Zeus, o pai de todos eles. Para os mixteques, no México, os primeiros bebês nasceram do solo, e o primeiro homem e a primeira mulher saíram de uma árvore mãe, aberta por seres divinos.

É curioso que em todas as teogonias a gênese ou está na natureza ou veio do espaço. A terra teria sido povoada por seres extraterrenos, inclusive para os católicos e judeus, já que seu deus veio e mora no céu. O mesmo céu de onde teria nascido a primeira estrela, como tentei explicar à minha filha. Mas a questão não está nas teogonias, todas elas míticas e poéticas.

O problema é atribuir maldade, bondade ou poder a um deus – qual seja ele – porque estas características são apenas humanas, demasiadamente humanas.

Diário Catarinense, 18 de fevereiro de 2011.

11 de fevereiro de 2011

Idiossincrasias

Tenho certa irritação com moscas e o hábito de só ir ao banheiro se tiver algo para ler. Tomo chá de alho com limão e mel para que todas as crueldades saiam com aquilo que os especialistas chamam de toxinas. Sou alérgico a ar-condicionado, porque se fosse bom a natureza já trataria de vir falseada. Minhas idiossincrasias só não são piores do que as da Claudinha, que dorme as nove da noite, ou as do Dennis, que só toma café frio e seu menu se restringe a pipocas e alcaparras. Já o Fifo não pode ver nada sujo, mal acaba de comer e já vai à pia lavar louça. O Vinícius tem a mania de imitar o Chacrinha, coisa que o Dennis tem pavor. As idiossincrasias, que seríamos sem elas?

Não consigo ler jornal sem que seja na ordem. Primeiro os editoriais, depois a política, a geral, dou uma olhada só nas manchetes da página policial, porque os personagens só mudam de nome, e, por último, a página de cultura. Mania herdada de outro vício, que é o de sempre comer a melhor bolacha quando já não há quase mais fome.

Conheci um sujeito que detestava pessoas que tinham piscina em casa e outro que desconfiava de homens que mandavam flores e usavam terno e gravata. Confesso que também desconfio, principalmente no verão, onde nada justifica – nem mesmo a tradição, o decoro e o ar-condicionado – combinação tão extemporânea. Aliás, adoro usar algumas palavras. Extemporânea é uma delas.

Acho um absurdo comer pizza com estrogonofe e batata palha por cima ou gente que coloca açúcar no café. Tenho alergia a políticos sem noção da separação entre bens privados e interesses públicos, mas principalmente dos eleitores mal informados que os elegem. Gosto de fotografia, literatura e cinema. Mas do cinema que eu gosto, quase ninguém aprecia.

Mas eu queria mesmo é ter um milhão de dólares, para morar um mês em cada cidade do mundo, pegar na mão da namorada – não sem antes se comover com sua existência extemporânea – e ouvi-la dizer: bom dia, meu moço bonito.

Diário Catarinense, 11 de fevereiro de 2011

4 de fevereiro de 2011

  
  
Daniel Olivetto, um certo ator,
retratado por Caio Cezar.
Certos atores

A fotografia é um indicador, porque aponta indícios de que algo aconteceu no mundo, de que alguma coisa se movimentou, foi pensada, estruturada. O retrato, entre os estilos (se é que podemos usar a palavra estilo), é o de mais difícil realização, principalmente porque o fotógrafo, além de se preocupar com quadro, luz, foco e todas as nuanças técnicas do ofício, ainda tem que dirigir a cena, ao contrário de fotografia de natureza, do cotidiano ou o fotojornalismo.

Apesar de o retrato de estúdio parecer mais ficção do que o resto, os índices de uma suposta “verdade” – ou de que “coisas aconteceram no mundo” – também estão presentes. E para dirigir a cena (esse ato a mais do retrato) o fotógrafo deve ter conhecimento de tudo isso. Ele tem que ter habilidade em lidar com a expressão e o movimento humano, e ainda fazer coabitar essa faceta com a luz, que, em última instância, é o que faz a fotografia. Fotografar, de raiz grega, é desenhar (grafia) com a luz (foto). E no caso do retrato, essa direção da expressão humana não pertence ao universo da reprodutibilidade comum à fotografia. Para isso, só a experiência serve, para roubar outra expressão benjaminiana.

Mas essa conversa toda é mesmo só pra dizer que o Caio Cezar conhece profundamente do assunto, que é um fotógrafo dedicado, talentoso e superexigente consigo mesmo. Tanto que, mesmo exercendo o ofício há muito tempo, tendo trabalhado em jornais e revistas, e ter sido educado pelo pai fotógrafo, o Marco Cezar, Caio voltou à escola pra conhecer mais do que já sabe. Outra prova é a de que demorou bastante tempo pra que ele expusesse sua fotografia. O resultado disso tudo é esta mostra, Certos Atores – que abriu ontem a noite no Nomuro –, de retratos belíssimos dos atores Renato Turnes, Gláucia Grígolo, Daniel Olivetto, Grazi Meyer e Elianne Carpes, na qual está tudo ali: cor, quadro, luz, expressividade e a marca autoral do Caio. E, claro, está o indício de que alguma coisa bacana aconteceu no mundo; e isso não é pouco.

Diário Catarinense, 4 de fevereiro de 2011.

SOBRE O ÓDIO

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