Confissões de um ex-poeta
Fui parido numa casa, já demolida - quase coisa inevitável nesses dias - em Lages, em 1962. A parteira, muito gorda (tanto quanto sua doçura, me disseram), entalou-se comigo no colo numa porta bem menor do que ela, mas muito maior que eu. Neste dia, a sensação de que à medida em que cresço (e quase cheguei aos dois metros) diminui o resto das coisas e das pessoas, proporcionalmente, nunca mais me abandonou. A única coisa que jamais diminui foi a imensidão do planalto, incluindo o pôr-do-sol dos mais solitários e comoventes que vi, de uma melancolia de doer. E reconheço que a imensidão do Planalto e a sensação de pequenez diante dele influenciou demais minha própria melancolia. Dou muita risada, mas é só disfarce, porque não sei as respostas para minhas próprias perguntas, e talvez se tornasse uma na outra as teria.
O nome Fábio veio de um tio, morto tragicamente. O primeiro nome - que abandonei desde cedo - e que só amigos íntimos, a família e o gerente do banco sabem, veio do próprio pai, também morto de forma trágica quando minha mãe me carregava de oito meses na barriga. Carrego, portanto, nomes de mortos e, junto com eles, a responsabilidade desse "carregar".
Não li nada sério até os 17 anos, nem mesmo as obrigações escolares, pelo fato de que o objeto livro não existia em casa. Mesmo assim, aos 9, ganhei um livro de orações, cuja primeira coisa que fiz com ele foi cheirá-lo. Talvez por isto tenha escolhido como uma das profissões fazer livros. E cada vez que um deles pára nas minhas mãos, repito o ritual do cheiro, com as mesmas sensações.
Aos 20 anos, entendi que Lages era apenas um retrato na parede e parti para o Desterro, aqui nesta Ilha onde vivo até hoje. Entrei para o curso de Letras, na UFSC, mas abandonei quando um professor me reprovou "por faltas", como se dizia, apesar de ter dito que meu trabalho sobre Cruz e Sousa era um dos melhores que havia lido e, em seguida, quando disse a uma professora que achava inútil saber se uma frase é subordinada assindética ou não. Ela disse que a gente deveria saber para poder escrever melhor. Talvez por isto eu até hoje não saiba escrever. Mesmo não sabendo, publiquei, só por teimosia, alguns livros. Comecei achando que era uma poeta genial, até descobrir que não passava de um barato imitador de Mário Quintana. Mas já era tarde, o livro estava publicado. Depois vieram outros, até que lá pelo terceiro ou quarto, para o bem da poesia e da literatura, larguei mão dela.
Sou, portanto, um ex-poeta, e mesmo não conheço outro. A pasta com os poemas, como na canção musicada pelo Jaguarito, joguei-a pelas costas, como se joga uma ferradura, sem olhar para trás. E os últimos versos do ex-poeta que fui diziam assim: "início das grandes civilizações / índios faziam cinema / mais fácil fazer navios / que poemas".
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Essa breve confissão foi escrita, com um terço de modificações, para o projeto "Um dedo de prosa", do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC, realizado em maio de 2005. A republico aqui por perceber que nada mudou desde então, do mesmo modo, como crença no relativismo, que tudo mudou desde então.
6 comentários:
modificada ou não, ainda muito lírica...e bela! grande beijo e saudades
gostei do poema...mostra mais um plis! quem sabe hoje voce gosta mais deles do que ontem... who knows my dear. Um big hug pra voce
Taí, também gostei. ;)
bacana pra caramba este resgate, Fábio!
O relativismo no final ficou muito bom!
abraços,
Ítalo.
quero post novo.
mais prazeroso é: musicar poemas de desabafo do que de sola de sapato.
Belo relato!
Grande abraço!
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