12 de julho de 2008

Polícia para quem precisa

As leis deveriam ser um contrato mútuo entre cidadãos, não entre o Estado e os cidadãos. O Estado deveria apenas mediar esse contrato. Mas os cidadãos nascem, crescem e morrem acreditando que o Estado é o pai. O que deveria ser uma tábua mínima de respeito mútuo virou um negócio paradoxal, do qual Kafka já havia descrito no começo do século passado.

Para piorar a relação entre indivíduo e Estado, existem os governos. Os governos (desculpem o didatismo exagerado, mas a maioria ainda desconhece), como são tantas as formas de infringir as leis, escolhem que tipo de crime ou infração lhes convém fiscalizar e punir primeiro. Essa é uma das faces da ideologia. Houve um tempo em que acreditei que as ideologias haviam desaparecido, principalmente depois que o poeta Cazuza quis uma pra viver. Elas têm menos adeptos, mas sua raiz etimológica, de ideal, ainda perpassa pessoas e governos. Os governos não punem ou fiscalizam somente por ela, as ideologias, mas também por grana. Talvez, por favor, me ajudem a pensar sobre isso, a grana seja uma ideologia. Seria?

Outro dia assisti um exemplo que me fez pensar sobre essa relação, e que talvez ajude a esclarecer esse pequeno ensaio. Vários policiais em várias viaturas entraram em um bar em busca de um alvará sanitário. Quer dizer, eles não foram em busca de um alvará sanitário, mas de qualquer coisa que incriminasse especificamente aquele bar. Aí entra a ideologia. Aquele bar é lugar freqüentado por intelectuais, atores, escritores, jornalistas, estudantes de arte, cineastas, dançarinos, enfim, essa gente com um pouco (cada qual à sua maneira, seja para o bem ou para mal) de opinião. Coisa a qual os governos não suportam. O comando da Polícia poderia vasculhar alvarás por qualquer das dezenas de bares da Ilha dos Aterros. Mas os outros bares não são freqüentados por esse tipo de gente, e, mais um detalhe, os outros bares onde eles não foram são freqüentados pelos filhos e apadrinhados do governo e da elite.

Não é ideológico um governo disponibilizar viaturas, homens e mulheres que poderiam ou deveriam priorizar o combate aos crimes que afetam, sim, a maioria da população, como a corrupção dentro dos próprios governos, mas escolhe fiscalizar bares onde freqüentam pessoas as quais ele, o governo, não suporta? A corrupção, e são tantos os casos que não caberia aqui listá-los, os desmandos, a incompetência, a burrice dos camaradas nos cargos comissionados são crimes que lesam cotidianamente milhares de cidadãos. Esse Estado está tomado por um governo que usa a sua ideologia para vigiar e punir. Tomo emprestado do escritor sul-africano, J.M. Coetzee, do livro que considero o fundador da literatura no século 21, "Diário de um ano ruim", outro exemplo para tudo isso: "O Estado moderno apela para a moralidade, para a religião e para a lei natural como fundamentos ideológicos à sua existência. Ao mesmo tempo, está preparado para infringir qualquer um ou todas essas coisas no interesse da autopreservação".

Nessa mesma noite, um policial avisa ao rapazinho que cuida dos carros em frente ao bar: "Não quero mais nenhum carro estacionado aqui na frente". Ora, um policial preparado, ainda que estejamos aqui dando exemplo mais fácil para explicar a "Microfísica do Poder", de Michel Foucault, diria de outro modo: "O Estado não quer mais ver nenhum carro estacionado aqui na frente", porque não é ele, o policial que tem que querer ou não, mas sim o Estado.

Essa falta de consciência política, a aristotélica - não essa medíocre das musiquinhas que os publicitários inventam para eleger corruptos - é responsável pela perpetuação de uma elite incapaz de compreender que o Estado é muito maior e duradouro que seus ridículos governos, bregas, burros, incapazes, feito de gente que nunca leu um livro na vida. Não é à toa a frase "cada povo tem o governo que merece".

Do mesmo modo, a Polícia, que não pertence ao governo, não pode ser ideológica. A polícia só será do Estado quando não aceitar ordens estúpidas dos governos, mas vigiar o que é de todos, o que é público. O que é público não pode ser regido por princípios ideológicos aparentemente totalitários, mas sim, em primeiro lugar, respeitadas as individualidades. Mas isso só acontecerá, infelizmente, quando cada cidadão quiser. De outro modo, seremos sempre governados por corruptos e por leis tolas às quais nós mesmos escolhemos. Não seríamos, sob essa ótica, nós mesmos os grandes tolos e igualmente corruptos?

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