24 de outubro de 2009

Dois míopes

Ambos saíram da mesma sala de cinema, assistiram ao mesmo filme, levantaram no mesmo segundo depois do letreiro anunciar o fim da sessão, mas não se conheciam. Caminharam juntos até o ponto de ônibus, mas não conversaram. O que pensavam? O que desejavam? No ponto, ela, míope que era, perguntou se ele poderia fazer o favor de dizer o que estava escrito no letreiro do latão. Ele disse que não poderia, porque também era míope. Como deveriam acenar, ou não, dependendo do destino, ambos cerraram os olhos para enxergar melhor. Quando o ônibus chegou bem próximo, ambos gritaram, um para o outro, como se fizessem um favor mútuo: “vai para o Centro”.

Eles embarcaram, passaram a catraca, e como se fosse a coisa mais natural do mundo, apenas porque eram míopes – e apesar de no veículo estarem somente eles dois, o cobrador e o motorista – sentaram um ao lado do outro. A conversa foi bem estranha, versava sobre quantos graus cada um tinha em cada par de lentes. Falaram de uma ou outra amenidade, até que ele, sem até hoje nunca ter sabido de onde tirou tanta coragem, pediu a garota em casamento.

Ela não ficou surpresa, não. Olhou para um lado, olhou para o outro, o cobrador estava na dele contando os trocados, respirou bem fundo, com o que podia enxergar, e disse “sim”. Ele sorriu, pegou na mão dela e foram até o terminal do Centro, assim, de mãos dadas. Depois, foram beber uma cerveja, comemorar o casamento, trocaram beijos e, como se fosse uma história de amor de verdade, ele teve que partir, porque, na época, o último ônibus para Santo Antônio de Lisboa, onde morava, partia à meia-noite.

No dia seguinte, ele não lembrava o nome de sua recém-mulher, nem o que fazia, mas estava apaixonado. Nunca soube se por ela, ou se pelo inusitado da cena. Descobriu depois, com o bilheteiro do cinema, o nome e o telefone dela. Telefonou, perguntou se ainda lembrava dele, ao que ela respondeu: “Eu não podia esquecer da voz do meu marido”. E assim foram uns dois meses de um a história que parecia ter tudo para durar para sempre. Mas não durou, porque o amor nem sempre é cego. Um dia ela foi embora, e ele desconfia que foi por causa dos óculos novos, que corrigiram pra sempre sua miopia.

no Diário Catarinense, 24 de outubro de 2009

14 comentários:

Maloio disse...

três míopes: a vista sem o meu óculos - que não sei onde perdi - foi embaçando cada vez mais, a letra miúda do navegador não me auxilou a chegar até o final da leitura... que bom que "ele" conseguiu descobrir o telefone e o nome dela, né? espero que a história "deles" tenha dado certo! Abraço, Maloio

Fabiana Lazzari disse...

Ah... que pena que ela foi embora...mas a míopia deles era forte heim!! hehehe
Lembrei do filme Janela da alma.
Assistindo o filme com meu marido, num dos momentos, eu disse: amor, é assim que eu enxergo! Ele disse espantado: Fabi, tu és cega!!! E aí eu respondi: e são somente 2 graus e meio. As pessoas não tem idéia do que é ser míope!!!
abraços querido.

Maíra disse...

muito boa! adorei! xx

Anônimo disse...

É certo que é um conto de alguém que jamais “pertenceria a um clube que o aceita como sócio”. Às vezes, é o único jeito de ficar na praia, quando todos querem a piscina.

Mariana disse...

Me fez pensar na animação de massinha em preto e branco "Mary and Max". Ja viu? Não é a mesma historia, mas também tem esse tom de "favor mutuo", de cumplicidade, além de uma relação com a miopia.

Senao, a frase "na época, o último ônibus para Santo Antônio de Lisboa, onde morava, partia à meia-noite", essa, teve um efeito especialmente comunicador pra mim.
Buzão corta barato total! hehe

Je t'embrasse.

Van Schultz disse...

Gostei Fábio!

fedrizzi disse...

Que bela história, Fábio.
Continuo te lendo, desde Porto Alegre. E teu fã. Abraços,
Alfredo Fedrizzi

Fifo Lima disse...

Na semana passada, depois de ler "Por que não cumprimos leis?", aquele texto enfadonho, pensei - por um momento - que a literatura havia escapado, mas descobri com "Dois Míopes" que o escriba está de volta. Abracíssimo.

JULIO CONTE disse...

Adorei e ja te adicionei nos meus favoritos.

Unknown disse...

Parabens, belo texto, gosto muito do seu blog.

Anônimo disse...

vERY gOOD

heriberto3001 disse...

Somos alunos (Diego Domingos, Felipe Sampaio) do Colégio Heriberto Hülse de Criciúma.
Estamos fazendo a leitura de seu livro "Como viver sem perguntar" e estamos gostando muito do conteúdo do livro. Estamos felizes por saber que você irá nós visitar... aguardamos ansiosamente.
Abraços.

Anônimo disse...

Bom Dia!

Estamos participando do projeto "marcando encontro com escritores catarinenses", UNIMED, Criciúma. Esperamos anciosamente sua visita, enquanto isso estamos conhecendo suas obras.

Um Abraço!

Alunos Heriberto Hulse.

ítalo puccini disse...

isso ficou maravilhoso.

li, reli, treli.
não cansei.

parabéns.
abraço.

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