NÃO HÁ DEMOCRACIA SEM INCLUSÃO
No vizinho Paraguai, onde seus habitantes foram massacrados por brasileiros, argentinos e uruguaios no fim do século 19 (numa guerra financiada pelos colonizadores ingleses), 77% do território pertence a apenas 1% da população. Isso mesmo. Fico triste em pensar que para a maioria da população brasileira isso seja considerado normal, até porque (e disso poucos brasileiros sabem), um único proprietário de terras no Brasil possui um “punhadinho” equivalente a quase três vezes o estado de Santa Catarina. Só um grande analfabeto político – propositadamente ou por ignorância (caso da maioria) – poderia pensar que isso pode ser correto. Não pode haver democracia com esse imenso e desproporcional acúmulo de capital em detrimento de uma enorme e quase absoluta maioria de desvalidos, pobres, famintos e analfabetos.
Pois bem, no quintal vizinho, como eu estava dizendo, esse percentual desigual de terra pertence à elite que se locupletou com a guerra e ficou no poder durante quase cem anos. Há pouco tempo, a população acordou e, democraticamente, elegeu Fernando Lugo para presidente. Ex-bispo da Igreja Católica, Lugo optou por um verbo que liberais e o tal “setor produtivo” detestam: incluir. Lugo, assim como qualquer pessoa com um mínimo de discernimento, sabe que não há democracia sem inclusão. Resolveu então apoiar os que não têm terra, ou seja, os outros 99% da população, que, pelas contas, seriam donas de apenas 23% do território.
É assim a democracia na América Latina, sempre refém de uma minoria que tem muito, contra a maioria que não tem nada. Não é por outro motivo que políticos latino-americanos fogem tal qual o diabo da cruz quando se fala em educação e cultura. É muito mais fácil gastar com asfalto, túneis, viadutos, conceder licenças absurdas para a iniciativa privada encher nossa cabeça de prédios medonhos do que distribuir a riqueza para educar, instruir, alimentar, e, o mais importante, incluir.
O presidente paraguaio não foi tirado sumariamente do poder porque era considerado safado, ladrão ou coisa que o valha. O motivo principal foi exatamente dar ouvidos àqueles que não tinham terra. O mais cruel disso tudo é que Lugo foi expulso do cargo por apoiar 99% da população. E esta mesma população só não ser rebela porque é incapaz, tal e qual no Brasil, de compreender o real sentido da democracia, e de que está sendo roubada cotidianamente pela minoria que detém o poder há tantos anos.
No Brasil, por exemplo, a classe média é tão ignorante que aceita pagar duas vezes para educar seus filhos, para ter saúde, segurança, transporte e cultura. A primeira quando paga seus impostos (muitas vezes cobrado direto do seu salário ou da comida que compra), que deveriam ser investidos (é o que diz a Constituição) justamente para educar, sanar, segurar e alimentar seu povo, e a segunda vez quando contrata serviços privados para obter o que já é de direito quando paga seus impostos. Se esta “bondade” do povo com os governos não se chama ignorância, honestamente, não sei mais o que possa ser. Meu medo é que o tal “setor produtivo” brasileiro, o mesmo que decidiu mudar o Código Florestal visando apenas seus interesses, reaja como os golpistas paraguaios (que na terça-feira vieram ao Brasil pedir apoio da bancada ruralista). Pior ainda, reaja do modo como reagiu nos anos 60 quando, pelos mesmos motivos, depuseram (na maior cara de pau e com apoio dos Estados Unidos) o presidente João Goulart, instalando uma ditadura longa e devastadora para a educação, à cultura e à inteligência dos brasileiros.
ALÉM DO MAIS...
DEMOCRACIA DA MOBILIDADE
Falando em
América Latina, li uma entrevista com o colombiano Henrique Peñarosa,
ex-prefeito de Bogotá, entre 1998 e 2001, que dá inveja por ele não
poder ser prefeito aqui da Ilha de Nossa Senhora dos Aterros. Digo isso,
porque os últimos prefeitos e o atual são incapazes de compreender o
que significa democracia e mobilidade, porque tem mais o perfil dos
golpistas paraguaios do que políticos com vontade democrática e de
incluir.
A ideia central de Peñarosa no
que diz respeito à democracia para a mobilidade tem um pressuposto
jurídico e constitucional o qual somente com educação e cultura é
possível compreender. Para ele, se o princípio básico da constituição é
que todos sejam iguais perante a lei, seria lógico que cem pessoas em um
ônibus teriam cem vezes mais direito do que uma pessoa dentro de um
automóvel. Mas não é o que acontece.
Uma cidade inteligente, para Peñarosa,
não é aquela em que os pobres podem andar de carro, mas aquela em que
os ricos usam transporte público. Para isso, é preciso dificultar o uso
do automóvel nas grande cidades, seja reduzindo vagas (aqui na Ilha o
poder público concede licença para construir gagarens em pleno centro
histórico), seja investindo pesadamente em transporte público
confortável e gratuito, seja construindo parques por onde possam ser
instaladas ciclovias seguras. O problema é que estas medidas seriam
consideradas um atentado à elite econômica. A mesma elite que dá golpes
em cima de golpes para valer apenas os seus direitos de minoria, só
porque tem grana e em nome de uma "produtividade" quase sempre injusta,
cruel, desumana.
Publicado originalmente no Diário Catarinense, 30 de junho de 2012.
2 comentários:
Enquanto as elites tomam parte na vanguarda dos acontecimentos, o povo toma na retaguarda. ( do livro Desaforismos de Georges Najjar Jr )
A mais pura verdade.
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