5 de janeiro de 2013

REVOLUÇÕES SILENCIOSAS



Durante 2012, pensei em questões que me pareciam ser importantes para desenvolver neste espaço chamado, não por menos, “Penso”. Por conta de assuntos emergentes, quase sempre críticos em relação a mandos e desmandos do poderes públicos, notadamente os mais próximos: municipal e estadual, não levei adiante tais reflexões e elas tornaram-se meras notas para futuro desenvolvimento. Acreditei agora, relendo-as, que poderia compartilhar (palavra tão da moda no ano que passou) com o leitor aquelas que ficaram apenas no âmbito da investigação, sem resolução, apenas perguntas, sem respostas. Seguem, portanto:

A teoria precede a experiência
Parece paradoxal, mas acredito na tese de que a teoria precede a experiência. Ao contrário do que a maioria crê, de que só é possível teorizar sobre algo com o qual primeiro vivenciamos, penso que a experiência só se denomina como tal se soubermos a priori sobre o que estamos vivenciando. 

O mundo como vontade e representação
O mundo, de acordo com apenas uma das máximas do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788 - 1860) acaba individualmente, todos os dias, para aqueles que morrem (o mundo como representação). Só existe “mundo” para quem conhece a palavra “mundo”, e não para os que “apenas” vivem nele. Viver não é necessariamente estar. O mundo, tal e qual concebemos, cada qual com suas crenças e descrenças, não acabou e não vai acabar. O que acontecem são modificações no modo de viver em comunidade. Estas mudanças têm a ver com as experiências. Mas como experimentar sem teorizar antes? Como crer que uma experiência pode ser boa ou ruim ou mesmo inócua? A crença em uma experiência futura (ainda não concretizada, apenas pensada) utiliza-se do mesmo mecanismo mental que gera a crença em qualquer coisa além da física. A crença em uma experiência ou em Deus tem a mesma raiz.

Fotografia e fotografia digital
Não entendo por que as pessoas chamam a velha fotografia com rolos de negativo de “fotografia analógica”. O termo foi roubado (imagino que por paronomia) da “telefonia analógica”, antecessora da “telefonia digital”. Para a transmissão de dados o termo “analógico” faz sentido, porque as informações transmitidas eram convertidos em qualquer ordem de grandeza (sons variáveis: altos e baixos), enquanto que no “telefone digital” os dados são sempre binários. Ao contrário da fotografia, a captação de uma imagem para um negativo não é feita por um dispositivo analógico, mas por um processo físico/químico. O ideal seria usarmos apenas a diferenciação para a fotografia digital — porque não faz sentido um sistema agregar um nome (no caso analógico)  apenas porque uma nova tecnologia (no caso a digital) foi criada — e mantermos o termo “fotografia”, sem complemento, para a velha e boa câmara de filme (e não câmera como se usa comumente), como sempre foi.

O tempo
Quando eu era piá, em Lages, os adultos se queixavam que a passagem do tempo era cada vez mais rápida na medida em que a idade avançava. Eu ficava imaginando que para meu avô, por exemplo, o tempo entre uma “dormida” e outra era menor do que o meu. Mas não entendia como o tempo podia passar mais rápido para ele e menos lento para mim se estávamos no mesmo instante no mesmo lugar. Com que velocidade o tempo deveria se comportar diante de um menino de 10 anos e de um homem de 60? Essa foi minha primeira questão filosófica séria.  Como diz meu amigo Iur Gomes, no ano passado, por esta época ainda era março.

ALÉM DO MAIS...

DO MÉXICO À ISLÂNDIA
Na semana que passou, cerca de doze mil zapatistas, grupo mexicano seguidor do revolucionário Emiliano Zapata, marcharam em silêncio em três cidades para lembrar o massacre de Acteal, quando 45 indígenas foram assassinados dentro de uma igreja, no dia 22 de dezembro de 1997, no Estado de Chiapas. Com roupas pretas e os rostos cobertos, vestindo preto e vermelho, os manifestantes diziam: “Senhor presidente, se o senhor não mostra sua verdadeira cara, não mostrarei a minha”.

E na Islândia, ao contrário dos governos que – mesmo se dizendo capitalistas – distribuíram bilhões de euros dos cidadãos para salvar bancos da bancarrota, o povo decidiu deixar os capitalistas falirem. Mais ainda, também em silêncio, criaram uma nova constituição em assembleias populares, estatizaram os bancos e decidiram democrativamente como usar o dinheiro dos impostos. O economista, prêmio Nobel, Paul Krugman, escreveu sem meias palavras no New York Times: “Enquanto os demais países resgataram banqueiros e fizeram o povo pagar o preço, a Islândia deixou que os bancos quebrassem e expandiu sua rede de proteção social”. Quem sabe não podemos também fazermos nossa revolução silenciosa? Meios não nos faltam. 
É isso. Um 2013 bem melhor do que 2012 para os que leram até este ponto final.



Publicado no Diário Catarinense, 5 de janeiro de 2012

1 de dezembro de 2012


           SOBRE A GÊNESE DA VIOLÊNCIA


            A partir do momento em que o Estado perde o controle total sobre a segurança pública é preciso perguntar – antes de mais nada – por qual motivo isto acontece. Toda violência generalizada é fruto da falta de investimento em educação e cultura. Na Islândia, o país com a menor taxa de homicídios do mundo, mais da metade das famílias têm por hábito passar os fins de semana nas bibliotecas públicas. Portanto, quando um governo deixa de lançar editais de cultura (obrigados por lei), quando obscurece as curadorias com comitês gestores que privilegiam apenas projetos do próprio governo (e qualquer um que tenha lido um livro sabe que cultura feita por governo sempre tem cunho fascista), quando mantem em seus quadros comissionados gerentes e diretores que não conseguem dialogar com artistas e produtores, está diretamente desrespeitando as regras democráticas. Se os governos desrespeitam as leis, por que sua população deveria respeitá-las? Desrespeito gera desrespeito e violência idem.

             Na abertura do teatro Ademir Rosa, por exemplo, o governador deixou escapar a pérola: “O artista, muitas vezes atua apenas pelo aplauso”. Ora, esse tipo de pensamento é que faz com que os governos tenham compaixão homicida pela arte e por quem a produz. Afinal, para que investir em arte e cultura se os artistas vivem de aplauso? Da próxima vez que tiver que pagar as contas de luz, água e outros tributos estaduais, darei uma enorme salva de palmas a elas ao invés de pagá-las. O governador, muito apreciador da arte, com certeza compreenderá.

             É triste, mas um governo que pensa deste modo é crente também que um povo precisa de asfalto mais do que de bibliotecas, naturalmente fazendo (ou por ignorância ou por desfaçatez) apologia à violência. Quando uma população perde todos os cinemas de rua, por exemplo, dando lugar ao comércio ou a templos (preconceituosos, de compreensão arcaica sobre alguns livros e contrárias ao espírito libertário da arte), perde naturalmente a noção coletiva de que o progresso, como escreveu o poeta Charles Baudelaire, não é a construção de prédios, ruas, avenidas e viadutos. O progresso, dizia ele, existirá somente quando não houver mais a extemporânea ideia de “pecado original”. E quando um governo não compreende tal metáfora está mais do que na hora de largar a prancheta da política partidária e abraçar a arte e a cultura como trabalho e geração de renda e não como passatempo merecedor apenas de aplausos.

          Enquanto a construção de um centro de compras sobre mangues e áreas cujas licenças ambientais são objetos de compra e venda, e não de análise técnica responsável, enquanto defende-se  hotéis privados e não em bibliotecas públicas em seus lugares, é óbvio que a população continuará pensando que “ter” é melhor do que “ser”. A paisagem do “ter” também incita violência, ao contrário da paisagem do “ser”. Para “ser” (e os governos não pensam nisto) é preciso formação, educação e cultura. Para “ter”, nem sempre, porque ninguém rouba conhecimento e cultura, apenas dinheiro e objetos. Os governos têm matado sistematicamente os habitantes que os sustentam (por não rara conivência e subserviência pública), seja por ignorar a arte como trabalho, seja deixando de investir em segurança com o objetivo de que as empresas de segurança aumentem seus lucros. Afinal, quando a segurança, a saúde, a educação e a cultura deixam de ser investimento público, para quem a população paga tributo? Para a privada, é óbvio. E se isto não é violência, o que será?
            
            E assim, violentamente, pagamos duas vezes para ter o que deveríamos ter quitando apenas uma vez. Uma para o Estado, cada vez mais ocupado por pessoas ignorantes (porque não pensam sequer sobre sua própria responsabilidade pela violência epidêmica), outra para a iniciativa privada, sempre com os pés dentro do Estado e mandando nele. Queimar ônibus é fichinha perto da violência que o Estado pratica todos os dias contra quem o sustenta. 

         Quando dos atentados aos Estados Unidos, em 2001, o governo norte-americano imediatamente procurou vingança cega. Poucos – como o filósofo como Noam Chomski  – perguntaram: “por quê sofremos tais atentados?” Não ouvi em nenhum momento o governo catarinense, responsável pela segurança pública, fazer tal pergunta, porque sabe há tempos a resposta: não investe no que deveria investir e gasta muito tempo e dinheiro no que não é de sua responsabilidade. E se já sabe é conivente. A conivência também gera violência.

MOSTRA.DOC
       E para quem gosta de cultura mais do que de asfalto, e acredita nela como remédio contra a violência, começa na segunda-feira, dia 3, e segue até o dia 7 de dezembro, a “mostra.doc”, na Fundação Badesc, com seis documentários. Desde “Moscou”, de Eduardo Coutinho, que abrirá a mostra, passando pelo genial “Zelig”, de Woody Allen, que na verdade é um falso documentário, o raro “Terra sem pão”, de Luis Buñuel, “Quarto 666”, de  Wim Wenders,  até “Além do azul selvagem”, de Werner Herzog. A produção da “mostra.doc”, sem nenhum apoio do Estado, é produzida por abnegados amantes do cinema, com apoio da Fundação Badesc, VideoFilmes, O Mago Realizações e Pingo no I – Arte e Cultura. E o mais importante: não será em um centro comercial, que os neocolonizados preferem chamar de “shopping”, e a entrada será franca.



3 de novembro de 2012


CARTA ABERTA A CESAR SOUZA JR.

Caro Cesar Souza Jr., em primeiro lugar, não vou usar as deferências honoríficas tradicionais porque as considero – além de tradição esdrúxula – falsas e, principalmente, ampliam as desigualdades. Sabemos que o poder é iniciado pelo domínio da linguagem, ou, para ser mais enfático: linguagem é poder. Por isso, em uma democracia real, ninguém pode ser mais do que "você", porque ilustríssimo, meretíssimo, e estas pataquadas nominais todas têm apenas uma conotação semelhante às becas das formaturas: um ato medieval e, portanto, ultrapassado.
Em segundo lugar, penso que você já deve ter percebido que a maioria da população, e, um pouco menos, a maioria do eleitorado, não apoiou suas propostas. Das 322 mil pessoas aptas ao voto, apenas 117 mil optaram pela sua candidatura. E muitos, você deve ter consciência disso (apesar de ser um percentual não explícito na urna eleitoral), votaram por considerarem a sua plataforma como sendo a “menos pior”. Em resumo, você obteve apenas 36,33% dos votos, apesar da falsa premissa, sempre na boca dos políticos como sendo verdadeira, de que receberam mais de 50% dos votos. Dos válidos, sim, mas da maioria (que é indício de democracia) não.
Em terceiro, outro número que você deve levar em consideração, é que propostas de inclusão social e de políticas públicas mais democráticas e menos agressivas ao meio ambiente obtiveram 94 mil votos no primeiro turno, praticamente um terço dos eleitores. Isso é uma vitória para uma cidade que tem, historicamente, um comportamento conservador e com vícios explícitos de lidar mal com sua própria história, baseada sempre em políticas de balcão, pouco republicanas e, infelizmente, atrasada e distante dos acontecimentos culturais de vanguarda. Estes números (e ainda a enorme renovação do legislativo) são um aviso mais do que óbvio e claro que metade da cidade não quer mais o velho prefeito, a velha política de conchavos e aberta ao capital (principalmente o imobiliário) e à ignorância de alguns legisladores que mal sabem escrever um ofício, quanto mais propor projetos coletivos para a cidade.
Por falar em cultura, você já foi secretario de uma secretaria estadual que carrega o inóspito e o despropositado em sua gênese: ser ao mesmo tempo voltada à cultura, ao esporte e ao turismo. E lá, soube que políticas públicas para a cultura (porque foi avisado) não podem ser de estado, porque tendem, historicamente, ao fascismo. O município hoje tem conselho de cultura, fundo de cultura, fundo de cinema e editais públicos, todos regidos por lei. Ainda que com financiamento inexpressivo, é um avanço enorme para uma cidade, como eu disse antes, atrasada. Em uma de suas entrevistas, você prometeu fazer eventos. Pois saiba que não é papel do estado promover eventos, mas sim incrementá-los e apoiá-los. Por isso, qualquer proposta que você tenha para a área (e pelas suas entrevistas e programas vi que são insípidas e velhas), ouça o Conselho, porque ele é representativo da sociedade.
Por outro lado, fico feliz que você tenha sido tão radicalmente contra a construção do complexo hoteleiro na Ponta do Coral. Mais do que gravar como meus favoritos no Youtube, guardei em um HD, como prova de que você não permitirá algo tão agressivo ao meio ambiente e ao entorno daquele ponto (em suas próprias palavras). E se um dia o poder imobiliário (que é maior as vezes do que um prefeito) vencer você nessa briga, prometo que projetarei teu protesto (aceito por 36,33% dos eleitores) nas paredes do hotel todos os dias, para que a cidade fique sabendo que um prefeito por aqui vale menos do que o poder da construção civil. Se você ouvir o conselho de cultura, talvez fique sabendo que naquele lugar cabe uma biblioteca e um teatro municipal (veja que uma cidade tão importante não dispõe de um teatro municipal, e a biblioteca fica bem distante, quase em São José), um parque público, salas de leitura, enfim, um centro cultural digno de uma cidade que deve ser mais do que praia.
No mais, gostaria imensamente de que você venha a ser o prefeito que ouviu não apenas os 36%33 dos que o elegeram, mas os 63,66% dos que deram um sinal claro que não querem mais uma cidade sem políticas públicas de inclusão; não querem mais política cultural de balcão ou de eventos, mas sim de formação de público e de estado; não querem mais o poder abusivo e cruel das empreiteiras; não querem mais um sistema de transporte público ruim, caro e ineficiente; não querem mais uma cidade que privilegia automóveis; não querem mais uma cidade onde professores de escolas recebem mal para dar aulas sem recursos, livros, e, muitas vezes, sem preparo; não querem mais, enfim (mas não só), uma cidade violenta e sem atendimento médico decente. Democracia, meu caro novo prefeito, não depende apenas de um voto no seu nome, depende sim da crença na própria democracia, e, neste caso, você tem a obrigação de ouvir os 73,66% que deram sinais bastante óbvios de que tipo de cidade querem para viver.

ALÉM DO MAIS...
Mostra A Caverna e Fundação Badesc
Esta semana, na Fundação Badesc, teve mais uma edição de “A Caverna”, mostra de cinema de animação. Com projeções na parede do Florianópolis Palace Hotel, o velho Flop, estreiou o filme “Alçapão para Gigantes", de Yannet Briggiler, adaptação homônima de um dos contos mais instigantes da obra de um dos autores mais fecundos e emblemáticos da literatura brasileira, o também poeta Péricles Prade.
A Fundação Badesc, sua sede, a ex-casa do ex-governador e ex-presidente Nereu Ramos, é hoje um dos poucos lugares onde intelectuais e artistas ainda podem expor, lançar livros, exibir seus filmes e se encontrar. Suas exposições, lançamentos de livros e o cine clube agitam o modorrento centro da Ilha de Nossa Senhora dos Aterros intelectualmente.
Pois o atual presidente do banco parece que não gosta que a Ilha pense, e quer se livrar da Fundação, alegando que banco tem que dar lucro; e cultura, na visão dele, não dá. Esta é a mentalidade da elite deste Estado iletrado chamado Santa Catarina. E o pior, por conta da “falta de lucro”, querem conceder o espaço para a Fundação Catarinense de Cultura tocá-lo. Ou seja, o pouco que se tem, querem passar às mãos de quem detesta ainda mais a arte e o pensamento, porque é notório e sabido que a atual gestão da FCC é há tempos considerada como sendo a mais indesejada da história.

Publicado no Diário Catarinense, 3 de novembro de 2012

23 de setembro de 2012


CULTURA PELA CULATRA


      A frase “Sempre que ouço a palavra cultura, tenho vontade de sacar uma arma” já foi atribuída a pelo menos três autores. Todos, não por coincidência, trabalharam para Hitler. Um deles, Joseph Goebbels, era o marqueteiro do Führer. O outro, Herman Göring, o chefe da polícia nazista, a Gestapo. O enunciado, ainda que caiba bem no repertório nazista, foi dita por um personagem de uma peça escrita por Hanns Johst, poeta e dramaturgo alemão simpatizante do Nacional Socialismo. O mais provável é que Johst tenha criado o personagem, mistura de Göring e Goebbels, justamente para homenageá-los, corroborando assim a vontade de “matar a cultura”.
      O cineasta francês, Jean-Luc Godard, no filme “O desprezo”, tem um personagem, que é produtor de filmes – uma paródia aos produtores norte-americanos – que em uma pequena sala de exibição, diz, em tom irônico: “Cada vez que ouço a palavra cultura tenho vontade de sacar meu talão de cheques”.
Esta pequena introdução opondo cultura e belicismo serve para exemplificar como governantes locais pensam sobre políticas públicas. Suas vontades têm mais a ver com sacar o revólver do que o talão de cheques. Os exemplos são inúmeros. O mais constrangedor é que, ao contrário do bom senso, onde há décadas está estabelecido que a cultura é um setor estratégico (a maioria dos países europeus, por exemplo, que vivem basicamente de seus patrimônios culturais) e dos Estados Unidos (cuja indústria do cinema e da música pop arrecadam mais do que a indústria automobilística), Santa Catarina caminha na contramão.
      O governador Raimundo Colombo não se importou de visitar um produtor de queijos, e tirar fotografias, que acabou de criar um Gruyére ou um Brie tupiniquim. Mas, chamado por todos os produtores a criar uma secretaria de cultura, faz ouvidos moucos. Por que, perguntamos há décadas, um setor tão estratégico e tão fundamental para o desenvolvimento do Estado é tratado de forma tão desprezível? Por que quando industriais, empresários, agricultores fazem protestos ou exigências os governos imediatamente abrem as portas dos palácios para ouvir suas queixas, e quando artistas querem ser ouvidos os governos fecham as portas?
      O que me faz pensar nessa negligência é que o queijo não é embutido de conceito, mas um livro, uma peça de teatro, um poema, uma canção são. Governos detestam conceitos, porque faz com que seus cidadãos pensem, ao contrário de quando comem queijo. E governos ruins não sobrevivem a um povo que pensa. Por isso, esvaziar seus artistas, deixá-los à margem, como se não fossem eles tão importantes quanto a indústria têxtil ou um pedaço de queijo, é fundamental para a sobrevivência de governos ruins. Caso contrário, não apenas o atual governador, mas todos os anteriores, já teriam há muito chamado os artistas para uma conversa, para saber o que pensam e do que precisam. Ele descobriria estupefato (se é que governos ruins ainda têm a capacidade de se surpreenderem) que o problema não é o corte de verbas que incomoda, mas o modo como esta pequena verba é gerida. O problema é de gestão, não de cifras. Preferimos 70 milhões justamente geridos e democraticamente distribuídos (em forma de fundos e editais transparentes) do que 240 milhões para projetos de governo de cunho autopropagandista, extemporâneos e de qualidade estética duvidosa, decidido por um comitê gestor, o qual nenhum produtor apoia, ignorado pelo Conselho Estadual de Cultura, que, ao contrário de aconselhar, apenas diz amém.
      A declaração do novo secretário de cultura, esporte e turismo (a junção de três áreas alheias já é por si só um agravante) de que o governo (por isso não queremos política de governo, mas de estado) é a de que eles só investirão em eventos que atraiam muita gente, como as festas de outubro. É o que dá nomear pessoas que não são da área. Pergunto ao novo secretário, como ele teria tratado Cruz e Souza (eu grafo com Z, porque era como ele mesmo assinava), para ficar no mais batido dos exemplos. O bardo não atingia muita gente, mas hoje é considerado o maior artista catarinense. Este tipo de declaração, de um secretário que sequer compareceu ao Fórum Regional de Cultura, que o próprio governo dele está promovendo, é que cria cizânias entre os governos e os produtores de cultura.

O que é o Fórum

      O Fórum, que reuniu artistas e produtores de todo o Estado e das mais variadas modalidades de expressão, estabelece diretrizes de conduta de estado, para que toda a política pública para o setor seja tratada como estratégica, não como política de balcão, favorecendo grupos do próprio governo, dando a impressão de que Santa Catarina só produz arte e cultura extemporânea. Pelo contrário, o Estado tem excelentes artistas, mas que precisam, do mesmo modo que o agricultor, de subsídios, sim, para que o público os reconheça e se reconheça nessa produção.
      Mas para que isto aconteça os governos precisam ter coragem de ouvir seus produtores, do mesmo modo como vai comer queijos e provar vinhos, os quais também precisamos. Até porque saber provar um bom queijo e um bom vinho também tem a ver com cultura. Só deixaremos de ser um povo violento, de ter um dos maiores índices de mortes no trânsito, de sermos tão colonizados em relação à língua e aos costumes alheios (principalmente quando deixamos de lado o conceito de antropofagia dos modernistas) quando os governos deixarem de vez de puxar o revólver cada vez que ouvem a palavra cultura. Da minha parte, cada vez que ouço a palavra revólver, me dá uma vontade enorme de puxar minha cultura.

26 de agosto de 2012

LAGES: UM RETRATO NA PAREDE


          Nasci e vivi por muito tempo em uma casa de madeira de um bairro periférico, mas de nome sacro e pomposo (Sagrado Coração de Jesus) de uma cidade hoje periférica (Lages). Minha avó expunha na parede da velha casa duas imagens fortes e instigantes. Uma delas era uma espécie de salvo conduto para o céu, algo como um diploma que lhe conferia regalias celestiais pelos bons serviços prestados à Igreja Católica, da qual era fiel devota. A outra, talvez pelo nome do bairro, um quadro de um Cristo com um coração exposto e sangrando. No quarto em que nasci e vivi até a adolescência, havia outro quadro, este quase diáfano, apesar de materialidade da moldura, do vidro e do papel, no qual uma imagem de um anjo, de asas enormes, cuidava, quase como no filme “Asas do Desejo”, de Wim Wenders, de um incauto garoto à beira de um rio para que ele não caísse. Escrevi “hoje”, poucas linhas acima, porque em algum momento da história, entre os anos de 1940 e fim dos de 1960, a cidade foi política e culturalmente bem mais importante do que é hoje. Essa importância datada tem muito a ver com a derrubada de milhares de araucárias e de outras espécies de árvores não menos importantes. Um de seus poetas, Raul Arruda Filho, escreveu um poema oswaldiano que é reflexo disso, que diz: “pinheiro / dinheiro”.

         Essa riqueza, nunca distribuída, sempre acumulada, era investida na “cidade”. Escrevo entre aspas porque no núcleo urbano do município, por esta época, vivia apenas pouco menos de 20% da população. O restante vivia nas fazendas e de vez em quando frequentava a “cidade”. O mais curioso disso tudo é que o lageano de posse viajava bastante. Nestas excursões, fotografava o patrimônio arquitetônico dos lugares e, quando construía sua casa, tentava reproduzir aquilo que via. O centro urbano da cidade constituído nessa época foi substituído, em nome do “progresso”, por uma arquitetura moderna, na qual predominava o “art déco”. Ainda que não seja considerado por muitos arquitetos como sendo um estilo, é peculiar nos detalhes. O novo rico lageano destruiu o patrimônio “colonial” (devem restar hoje não mais do que meia dúzia de exemplares), mas, por sorte e talvez ingenuidade, construiu outro, o “moderno”. O centro histórico de Lages, até o fim dos anos de 1980, era predominantemente modernista. Hoje, apesar dos desgastes e da poluição visual absurda, a cidade tem, escondida atrás das placas e dos anúncios cafonas, um patrimônio razoável desta época, ainda que mal cuidado.


Colégio Aristiliano Ramos. Na terceira janela, da esquerda para a direita, do piso inferior,
cursei o primeiro ano do primário, em 1970.
        Um dos edifícios centrais da cidade é o “Colégio Aristiliano Ramos”, onde cursei boa parte da vida escolar primária. O desprezo por tão importante patrimônio, nos últimos anos, promovido por uma administração estadual (o prédio pertence ao Estado) obtusa no que se refere à história e à cultura, fez a coisa mais insensata e de cunho fascista (é marca do fascismo a uniformização das pessoas e do patrimônio) que já vi na vida: pintou de vermelho e verde uma edificação que foi concebida pelo seu arquiteto para ser branca. A ignorância não tem medida, mesmo.

          Esse tipo de desleixo, apesar de começo tão promissor, pois Lages possuía um plano diretor que “orientava” inclusive a construção de linhas arredondas nas esquinas, como se vê em muitas cidades europeias e nas capitais mais antigas do País, entre outras novidades. Havia uma praça, no lugar onde hoje é um enorme terminal de ônibus, ao lado do antigo mercado público (o atual, também abandonado, tem estilo “art déco”), que faria inveja a qualquer paisagista.

         Em meados da década de 80 do século passado, a casa onde nasci — citada no começo dessa prosa e que passou por todo tipo de reforma, desde o chão batido na cozinha, as portas de tramelas, até o forno externo de tijolos no qual minha avó fazia muitos pães para alimentar os 11 filhos criados, netos e agregados, de onde saíam enormes broas de polvilho — foi ao chão. Com ela, não sem um choro convulsivo no meio da rua, do qual nunca morri de vergonha, foram juntas todas as reminiscências de uma infância de labirintos, questionamentos, aventuras e segredos.

        Antes disso, em um sobrado enorme de alvenaria, bem no centro da cidade, vivi um pedaço da infância, entre os 3 e os 8 anos talvez. Era um prédio construído nessa época de riqueza, com pé direito alto, muitos quartos, janelas de madeira e do mesmo modo cheio de segredos. Passei muito tempo da minha vida adulta prometendo um dia bater àquela porta, e pedir permissão para o atual dono para que me deixasse revisitar a infância. Eu sei que a casa pareceria minúscula, porque as coisas diminuem na medida em que a gente cresce. Nunca fiz isso. Quando criei coragem, ela havia sido toda transformada e não guarda mais nada do que era, nem mesmo sua fachada.

         Estas reminiscências me veem agora porque talvez seja o único modo de justificar meu apreço pela proteção incondicional dos acervos históricos, culturais e arquitetônicos. Porque, mesmo para quem apenas passa na frente todos os dias de uma casa antiga, como a admiração que tenho pelas duas casas art déco diante da praça dos Bombeiros, aqui na Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, por exemplo, é um modo de reter e compreender a história, principalmente para que ninguém cometa erros no presente alegando que não sabia da existência deles no passado.

       Lages, hoje, para imitar Carlos Drummond de Andrade, é apenas um retrato na parede, mas como dói.

28 de julho de 2012

SE EU FOSSE CANDIDATO

          Fui, sou e provavelmente (porque aprendi que a língua é o chicote da bunda) serei sempre da turma do Groucho Marx, que desconfiaria de qualquer clube que o aceitasse como sócio. Nunca fui filiado a partidos políticos (cuja homofonia com o verbo partir é reveladora), a igrejas ou clubes. Fui presidente da União Brasileira de Escritores, cujo mandato foi catastrófico, e durante um ano inteiro fui coordenador geral da Fundação Franklin Cascaes (espécie de chefe de gabinete) em 2006. Mas fui defenestrado por questões exclusivamente políticas. Não por ser defensor da instituição, como todos que ocupam estes cargos o são, mas por ser crítico interno da falta de ação, planejamento e de uma política mais democrática e justa para o setor. É bem provável que não interesse a ninguém a conversa de alguém que não fede nem cheira politicamente. Sou apenas um pensador selvagem, mas que ainda tem título de eleitor e, por conta disso, tem direito constitucional de emitir opinião sobre os destinos de uma cidade que pelo menos desde os anos de 1970 foi administrada por interesses apenas privados e por eleitores, na falta de palavra melhor, omissos. Afinal, quem escolhe os administradores é o eleitor.
          Se eu fosse candidato, em primeiro lugar, possivelmente eu teria apenas o voto da minha família. E isto, não interessa a nenhum partido, porque seus programas de governo têm zero de ideias e cem de fisiologismo e vontade de poder. Para certificar essa afirmação, basta conferir as coligações e os conchavos das candidaturas. Se eu fosse candidato, eu não veicularia musiquinhas toscas (que os marqueteiros neocolonizados chamam de jingle). Não entendo o motivo pelo qual os partidos brigam e fazem tantas coligações espúrias para obter mais tempo na tevê e no rádio se depois não usam para expor ideias. Isso demonstra que eles talvez não tenham ideias.
          Se eu fosse candidato priorizaria a cultura, porque é reveladora de toda a insanidade urbana. O fato de a elite achar que é feio andar de ônibus, ou colocar seu filho em uma escola pública é uma questão cultural. O fato de as pessoas acharem bonito destruir patrimônio histórico para dar lugar a prédios de arquitetura duvidosa é um problema cultural. O fato de existir um merdário bem na entrada da Ilha dos Aterros é um problema cultural. Se vivêssemos em uma cidade culta, se houvesse há tempos uma política pública democrática, com editais públicos, com uma casa legisladora que fosse culta, o centro histórico da Ilha seria hoje uma das atrações turísticas mais prestigiadas da América. Se tivéssemos tido, no passado, prefeitos que fossem ousados e não tão iletrados, a estátua da Polícia Militar na Beira-Mar (nada contra a instituição, mas o mau gosto da escultura) já teria sido substituída pelo pássaro gigante de Eli Heil. Mas quantos habitantes dessa Ilha tão exageradamente cafona conhecem dona Eli?
          Se eu fosse candidato, proporia a proibição da entrada de automóveis no Centro Histórico. Os ônibus seriam gratuitos e de qualidade, porque o direito de ir e vir de apenas um cidadão em seu automóvel não pode nunca ser maior do que 60 dentro de um ônibus. Se eu fosse candidato, proporia a estatização de todo o sistema de saúde e de educação e a conseqüente contratação de quantos funcionários fossem necessários para jamais um cidadão morrer no corredor do hospital. Do mesmo modo, proporia a construção de hospitais, clínicas e postos de saúde na quantidade recomendada pela Organização Mundial da Saúde. Se eu fosse candidato, proporia a construção de quilômetros de estrada, mas para bicicletas, não para os automóveis; e o transporte marítimo seria prioridade. Se eu fosse candidato uma das plataformas de governo seria a suspensão de todas as construções, até que se fizesse um levantamento honesto de seus devidos impactos ambientais. Se eu fosse candidato, proporia a construção da maior biblioteca da América Latina na Ponta do Coral, porque é de livros que precisamos e não de asfalto ou de hotéis. O lema de minha campanha seria: Menos asfalto, mais cultura.
          E se fosse permitida a inscrição de uma candidatura independente, como nos Estados Unidos, e se por uma loucura qualquer eu fosse eleito, enfim, a elite tacanha da Ilha pediria meu impeachment por insanidade, e o povo aceitaria tranquilamente, porque sofre do mesmo mal do qual eu seria acusado: insanidade. Porém, por vias distintas. Eu por achar que devo ser feliz murando numa ilha respirando arte por toda parte. O eleitor e a elite, por achar que a felicidade está dentro de um centro de compras em pleno mangue.

ALÉM DO MAIS...
Turismo não é só praia e hotel de luxo.
          Os dois maiores destinos turísticos do mundo hoje são a França e a Espanha. Ambos os países, segundo os turistas que os procuram, são visitados pelos respectivos patrimônios artísticos e históricos. A Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, ao contrário, quer atrair turistas ignorando completamente os dois maiores atrativos. Aqui, patrimônio histórico é derrubado para dar lugar a centros de compras. Mas o turismo de compras está em Miami e Nova Iorque, onde tudo é mais barato. E quanto ao patrimônio cultural, os governantes investem em Andrea Bocelli e duplas sertanejas. Enquanto isso, um minguado edital municipal e um fundo minúsculo, menores do que o de muitos municípios do interior, penam para saírem das gavetas. Quanto às praias, estas, em breve, estarão como Balneário Camboriú, onde os prédios à beira mar cobrem a luz do sol às três da tarde. Esse é o retrato cruel da elite e consequentemente do seu eleitor que a escolhe, muitas vezes por um punhado de arroz, outras por ignorância mesmo, porque é com ela que candidatos e partidos contam quando escrevem ou improvisam suas musiquinhas estúpidas e seus discursos óbvios, ignorantes e extemporâneos.

Publicado no Diário Catarinense, em 28 de julho de 2012

30 de junho de 2012

NÃO HÁ DEMOCRACIA SEM INCLUSÃO

          No vizinho Paraguai, onde seus habitantes foram massacrados por brasileiros, argentinos e uruguaios no fim do século 19 (numa guerra financiada pelos colonizadores ingleses), 77% do território pertence a apenas 1% da população. Isso mesmo. Fico triste em pensar que para a maioria da população brasileira isso seja considerado normal, até porque (e disso poucos brasileiros sabem), um único proprietário de terras no Brasil possui um “punhadinho” equivalente a quase três vezes o estado de Santa Catarina. Só um grande analfabeto político – propositadamente ou por ignorância (caso da maioria) – poderia pensar que isso pode ser correto. Não pode haver democracia com esse imenso e desproporcional acúmulo de capital em detrimento de uma enorme e quase absoluta maioria de desvalidos, pobres, famintos e analfabetos.
          Pois bem, no quintal vizinho, como eu estava dizendo, esse percentual desigual de terra pertence à elite que se locupletou com a guerra e ficou no poder durante quase cem anos. Há pouco tempo, a população acordou e, democraticamente, elegeu Fernando Lugo para presidente. Ex-bispo da Igreja Católica, Lugo optou por um verbo que liberais e o tal “setor produtivo” detestam: incluir. Lugo, assim como qualquer pessoa com um mínimo de discernimento, sabe que não há democracia sem inclusão. Resolveu então apoiar os que não têm terra, ou seja, os outros 99% da população, que, pelas contas, seriam donas de apenas 23% do território.
          É assim a democracia na América Latina, sempre refém de uma minoria que tem muito, contra a maioria que não tem nada. Não é por outro motivo que políticos latino-americanos fogem tal qual o diabo da cruz quando se fala em educação e cultura. É muito mais fácil gastar com asfalto, túneis, viadutos, conceder licenças absurdas para a iniciativa privada encher nossa cabeça de prédios medonhos do que distribuir a riqueza para educar, instruir, alimentar, e, o mais importante, incluir.
O presidente paraguaio não foi tirado sumariamente do poder porque era considerado safado, ladrão ou coisa que o valha. O motivo principal foi exatamente dar ouvidos àqueles que não tinham terra. O mais cruel disso tudo é que Lugo foi expulso do cargo por apoiar 99% da população. E esta mesma população só não ser rebela porque é incapaz, tal e qual no Brasil, de compreender o real sentido da democracia, e de que está sendo roubada cotidianamente pela minoria que detém o poder há tantos anos.
          No Brasil, por exemplo, a classe média é tão ignorante que aceita pagar duas vezes para educar seus filhos, para ter saúde, segurança, transporte e cultura. A primeira quando paga seus impostos (muitas vezes cobrado direto do seu salário ou da comida que compra), que deveriam ser investidos (é o que diz a Constituição) justamente para educar, sanar, segurar e alimentar seu povo, e a segunda vez quando contrata serviços privados para obter o que já é de direito quando paga seus impostos. Se esta “bondade” do povo com os governos não se chama ignorância, honestamente, não sei mais o que possa ser. Meu medo é que o tal “setor produtivo” brasileiro, o mesmo que decidiu mudar o Código Florestal visando apenas seus interesses, reaja como os golpistas paraguaios (que na terça-feira vieram ao Brasil pedir apoio da bancada ruralista). Pior ainda, reaja do modo como reagiu nos anos 60 quando, pelos mesmos motivos, depuseram (na maior cara de pau e com apoio dos Estados Unidos) o presidente João Goulart, instalando uma ditadura longa e devastadora para a educação, à cultura e à inteligência dos brasileiros.

ALÉM DO MAIS...
DEMOCRACIA DA MOBILIDADE
          Falando em América Latina, li uma entrevista com o colombiano Henrique Peñarosa, ex-prefeito de Bogotá, entre 1998 e 2001, que dá inveja por ele não poder ser prefeito aqui da Ilha de Nossa Senhora dos Aterros. Digo isso, porque os últimos prefeitos e o atual são incapazes de compreender o que significa democracia e mobilidade, porque tem mais o perfil dos golpistas paraguaios do que políticos com vontade democrática e de incluir.
           A ideia central de Peñarosa no que diz respeito à democracia para a mobilidade tem um pressuposto jurídico e constitucional o qual somente com educação e cultura é possível compreender. Para ele, se o princípio básico da constituição é que todos sejam iguais perante a lei, seria lógico que cem pessoas em um ônibus teriam cem vezes mais direito do que uma pessoa dentro de um automóvel. Mas não é o que acontece.
           Uma cidade inteligente, para Peñarosa, não é aquela em que os pobres podem andar de carro, mas aquela em que os ricos usam transporte público. Para isso, é preciso dificultar o uso do automóvel nas grande cidades, seja reduzindo vagas (aqui na Ilha o poder público concede licença para construir gagarens em pleno centro histórico), seja investindo pesadamente em transporte público confortável e gratuito, seja construindo parques por onde possam ser instaladas ciclovias seguras. O problema é que estas medidas seriam consideradas um atentado à elite econômica. A mesma elite que dá golpes em cima de golpes para valer apenas os seus direitos de minoria, só porque tem grana  e em nome de uma "produtividade" quase sempre injusta, cruel, desumana. 

Publicado originalmente no Diário Catarinense, 30 de junho de 2012.
         

2 de junho de 2012

ESPAÇOS PÚBLICOS, EXPLORAÇÕES PRIVADAS

             Em todo lugar, país, cidade, estado ou até mesmo uma vila, pessoas são historicamente solicitadas (às vezes obrigadas) a mudar seu modo de vida. Os motivos, os mais variáveis, desde questões políticas, econômicas, sociais, desastres naturais, epidemias, violência generalizada, descrenças, guerras, poluição, até culturais. Afinal, o que nos difere dos outros animais é a cultura. Um dos paradoxos da vida nas cidades é que mudar uma sociedade para melhor, muitas vezes depende de pouca gente. Um empresário que vive da especulação do espaço urbano, por exemplo,  que nunca abriu um livro de filosofia ou um político que odeia arte (bastante comum em Santa Catarina) são incapazes de compreender (ou não desejam) que o prédio que pretendem construir ou conceder licença interferirá para sempre na paisagem urbana da cidade em que mora. Eles resistem às mudanças, não aceitando que suas ideias de arquitetura e de ocupação não podem ser maiores que o desejo de todas as outras pessoas que moram na mesma cidade. Por isso é que existe tombamento de patrimônio cultural e histórico, porque a paisagem urbana não pertence aos indivíduos, mas sim a todo o conjunto da população. O privado não pode tudo, até mesmo no país considerado como sendo o mais liberal de todos, os Estados Unidos.
             As leis, principalmente no Brasil, sempre foram feitas da elite para a elite. Em Santa Catarina a elite ainda é muito pior que a do resto do País. Afinal, partiu de um ex-governador do Estado a ideia de reformar para pior o Código Florestal Brasileiro. Parece até que fez por birra e vingança porque, não conseguindo mudar a legislação estadual quando governava o Estado, por ser atrelada à lei federal, quis, quando senador, mudar o país para tentar mudar o estado que governava. É uma situação par e par com o especulador urbano, típica de uma elite que, se pudesse, ou se o mundo não tivesse mudado tanto, não acharia nem um pouco aterrador manter um escravo em sua casa em nome da “produtividade” e da “força produtiva”.
            Neste mesmo processo de necessidade de mudança radical, todo mundo está cansado de saber que não é mais possível conviver com a degradação urbana e ambiental de modo geral. E as elites, inclusive na hora da escolha deste ou daquele candidato e na parceria maléfica, à maioria, com os financiadores privados das campanhas (sempre com alguma moeda de troca), são sempre as últimas a resistir a mudanças. Mudar significa para eles deixar de ganhar o seu. À elite que não se importa com o bem coletivo a ideia de mudança sempre é desesperadora.
           As mudanças necessárias mais radicais (no movimento de ir às raízes) hoje têm a ver com a paisagem urbana e com o meio ambiente. Políticos e empresários adoram o discurso do reciclável, porque não mexe necessariamente no bolso deles. Ainda por cima os qualifica diante da comunidade, mas oculta a real solução (que aí sim mexeria com seus bolsos) que seria a de reduzir ao máximo os níveis de produção – e a conseqüente exploração irracional dos recursos naturais – e de consumo. Qualquer estudante sabe que os recursos são esgotáveis e que o lixo é o hoje um dos grandes problemas ambientais. Reciclar é necessário, mas mudar os padrões de produção e consumo é emergencial. Afinal, produtos recicláveis também vão para o lixo, e mais rápido do que pensamos. Ambientalistas calculam que em menos de seis meses um produto reciclado também estará nos aterros sanitários.
           Portanto, o discurso das “classes produtivas” tem que mudar. Mas para isso, é preciso que a população compreenda – e pressione para as mudanças (e não é assistindo tevê ou indo ao centro de compras que compreenderá) – que a exploração dos recursos naturais não pode ser objeto de lucro pessoal ou empresarial, porque é justamente um dos princípios da geração da abissal e desproporcional distribuição de riquezas existente hoje no País. E mudar, nesse caso, é começar a rejeitar a crença de que precisamos de tudo o que a indústria pode produzir, de que precisamos mais carros, mais televisores, mais plásticos, mais isso e aquilo. O segundo passo é estar atento à exploração privada dos recursos naturais, que são bens públicos.


ALÉM DO MAIS - A PONTA DO CORAL

           E por falar em bem público, em qualquer outra cidade do mundo, onde não houvesse uma elite tão iletrada quanto a que vive na Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, a Ponta do Coral – motivo de disputa entre o povo e um especulador urbano – já teria há muito tempo um grande museu de arte público, uma enorme biblioteca, um parque arborizado, um pequeno teatro e uma livraria aberta 24 horas por dia. Nessa mesma cidade letrada que sonhamos, o discurso do especulador e de boa parte da população desinformada de que o local vive sujo e abandonado não seria aceito. Principalmente porque em cidades bem cuidadas, o prefeito já teria solicitado, ao que se supõe proprietário, formalmente a limpeza do terreno. Em algumas cidades, o abandono e a sujeira são passíveis, inclusive, de desapropriação compulsória.
          O que não pode é o suposto proprietário usar a suposta sujeira e abandono, que ele mesmo mantém, como álibi da crença de que apenas um hotel manterá a assepsia do lugar. Aliás, é comum isso na Ilha. Existem vários imóveis tombados abandonados pelos seus donos aguardando que eles tombem de verdade para vender aos especuladores. Um prefeito inteligente teria mandado limpar a casa, o terreno, e tirar os tapumes, que sequer permitem a um cidadão caminhar na calçada que, se o prefeito ainda não aprendeu, é pública. E se fosse uma cidade mais letrada ainda, estes imóveis já teriam sido desapropriados e se transformados em espaços públicos. Mas eu esqueço que não estamos ainda em uma cidade assim. Quem sabe, um dia...

Publicado originalmente no Diário Catarinense, 2 de jungo de 2012

5 de maio de 2012

PELO FIM DA IGNORÂNCIA

Em 29 de janeiro de 2011, publiquei, aqui mesmo nesse espaço, uma carta ao meu conterrâneo, (por coincidência, o governador do Estado, Raimundo Colombo), uma carta aberta (leia aqui). Nela, entre outras questões, avisava ao incauto recém mandatário que existia uma insatisfação generalizada por parte dos trabalhadores da cultura (incluindo produtores, artistas e intelectuais, o que não é pouca coisa) em relação aos desmandos por parte do seu antecessor em relação às políticas públicas para o setor. Eu dizia, entre outras coisas, que a indústria cultural é a terceira maior do mundo e que Santa Catarina, que tanto se orgulha de ser uma federação criativa, não poderia ter um governo tão omisso em relação às artes e à cultura.

Ciente de que ele não sabia disso, porque todos os políticos em geral não creem que arte e cultura sejam importantes, porque para eles a palavra progresso tem a ver única e exclusivamente com asfalto, pontes, viadutos e construção civil, publiquei a carta para que ele não passasse por ignorante. O que fica feio para um governo, principalmente porque os outros não se importaram em passar para a história como sendo.

No aviso, ou na tal missiva, deixei bem claro, e reproduzo para os leitores que não lembram, e para o próprio, que, ao que parece, não leu: “É sabido e notório – e quem produz independentemente sabe e fala disso – o desastre que foi o seu antecessor na área da cultura, por ter juntado três pastas distintas (esporte, turismo e cultura) numa única; por ter acabado com os editais que funcionavam (ainda que modestamente), criando um apenas no último de seus oito anos de mandato; e por ter feito uma política de governo, enquanto todo o mundo sabe que o ideal é uma política de Estado. Mas para criá-la é preciso, antes de mais nada, conversar com quem produz, porque não cabe ao governo, nem ao Estado fazer cultura, mas sim à comunidade.” E, para completar, para que ele, o governador, não soubesse o que fazer, reproduzi as reivindicações históricas da categoria: “1) criar uma secretaria de cultura; 2) rever urgentemente o Funcultural e acabar com todos os seus vícios; 3) ouvir a categoria para criar, ainda este ano, um edital democrático, claro e inteligente para a área. Estas três medidas seriam o começo do maior investimento para a cultura que um governador já teria feito em toda a história de Santa Catarina. Por que não ousar fazê-lo?”

Como ninguém avisou, nem mesmo seus assessores, até porque são de partidos diferentes e têm lá, todos sabem, suas pendengas internas e históricas, aconteceu o que não precisava ter acontecido. Artistas e produtores da Capital e de outras cinco cidades, Joinville, Jaraguá, Criciúma, Itajaí e Chapecó, importantes economicamente, foram às ruas, às secretarias regionais para entregar uma carta/pedido (que resume o que está escrito acima), solicitando providências imediatas. Aqui na Ilha dos Aterros, ocuparam o Centro Integrado de Cultura para relembrar o governo que é necessário e urgente que ouça seus artistas e faça o óbvio, para não fazer feio diante de outros estados que têm suas secretarias, seus planos, seus fundos e seus editais funcionando. E, também, para que seus trabalhadores da indústria cultural possam efetivamente trabalhar e pagar seus impostos em dia para o franco desenvolvimento do Estado.

ALÉM DO MAIS...
AGORA VAI?

Durante toda a semana que passou, o CIC foi ocupado com inúmeras manifestações artísticas, mas, parece que o governador nem sabe do que se trata, já que seu superintendente, Joceli de Souza, não é da mesma turma do governador, porque responde, ainda, ao ex-secretário, Gilmar Knaesel, num acordo político, para nós, simples mortais que queremos apenas trabalhar, difícil e até inútil de entender. O que fica no ar é que o governador, sem ter mando algum de voz, a priori, na acepção kantiana, escolheu por omissão o lado ignorante da questão, qual seja, pensar que o Estado de Santa Catarina não precisa de uma indústria cultural, talvez porque, se promover seus cidadãos a uma condição de pensadores, leitores, espectadores ativos, deixarão de ser também ignorantes como seus governos e, assim, não os escolherão mais, nem mesmo para síndicos.

O movimento de ocupação do CIC não precisava ter acontecido se o governo não tivesse feito ouvidos moucos, se tivesse escolhido assessores menos politiqueiros e mais intelectuais, se tivesse ouvidos os trabalhadores, artistas e produtores, se tivesse a capacidade intelectual mais apurada para compreender que um povo sem cultura e sem educação é como gado que se toca sem se importar para onde vai.

AQUELA QUE FAZ PENSAR

Lembro de que no dia da posse do senhor Cesar Souza Júnior, o mesmo que prometeu mudar tudo isso e não conseguiu, talvez porque tenha esquecido a carteira de identidade antes de embarcar para Chapecó no dia do lançamento do Edital de Cinema, conversei com um assessor da Santur, meu conterrâneo também, o senhor Flavio Agustini, que me disse, num tom bastante irônico: “O governador (em alusão à minha carta) só vai fazer se ele (grife, leitor, por favor) quiser”. E eu respondi: “Ele não gostará de passar por ignorante”.

Portanto, meu conterrâneo tem mais uma chance de passar para a história como sendo o cara que criou e incentivou a indústria mais importante e menos poluente e mais necessária para os tempos bicudos em que vivemos, aquela que faz o povo se alegrar, se comover, se emocionar e, principalmente, aquela que mais faz pensar.
 
Publicado no Diário Catarinense, 5 de maio de 2012

7 de abril de 2012

OS GOVERNOS MERECIDOS

         Há uma tendência, talvez atávica, de o animal humano gostar da servidão (tanto para ser o senhor quanto cativo). Sobre isso, já escreveu Étienne de la Boétie, humanista francês contemporâneo de Montaigne, um dos ensaístas mais brilhantes do século XVI, pai, aliás do termo “ensaio”. La Boétie inicia a dialética da servidão já no título de sua principal obra: Discurso sobre a servidão voluntária, pois, aparentemente, como alguém escolheria a servidão? Por que alguém sacrificaria a liberdade de forma espontânea?
          Considerado, antes mesmo de Bakunin (com seu instigante Textos anarquistas, de 1874), como sendo um livro a favor do anarquismo, la Boétie, faz um questionamento crucial sobre a supressão voluntária da liberdade. Mas para não deixar a prosa muito comprida, o que la Boétie diz no fim é que a liberdade só é conquistada quando se quer. Quando ele pergunta de onde um único homem tira tanto poder para controlar a todos, está atribuindo o caráter de voluntariado ao servilismo. Seria isso que o animal humano precisa: um tirano e um deus que o castigue? Seríamos atavicamente masoquistas? Isso explicaria a frase, tão comumente aceita e declarada, de que todo povo tem o governo que merece?
Essa pequena introdução foi necessária para trazer ao nosso pequeno burgo, a Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, e (por que não?) estender ao Estado, a Santa e Brega Catarina, sobre o comportamento político da última década. Não nos cabe escolher o secretário disso e daquilo, nem tampouco o homem que abrirá a porta de entrada do palácio. O que nos cabe de direito, através do voto, é escolher o prefeito e o governador. Mas nunca é demais, só para lembrar a microfísica do poder, de Michel Foucault, quem nos dará ou não a senha para conversar diretamente com aquele que nós elegemos é o porteiro que não escolhemos. Quem move a máquina que nos engole não é necessariamente o prefeito, coitado, tão envolto com problemas que nem são da cidade e dos seus cidadãos, e sim com sua reeleição, mas o estafeta que emperra um projeto, o fulano de carreira que não leva seu documento adiante, o funcionário que tem a frase sempre pronta: “Nós não podemos fazer nada, são ordens”. O que não nos damos conta, nisso que vou chamar de voluntarismo da burocracia, é que, na maioria das vezes, não existe ordem, existe apenas um vício de origem. As coisas funcionam assim desse modo há tanto tempo que chega a soar insanidade mudar o que é ruim.
        Como podemos deixar de ser reféns dessa doença social que é a relação quase bizarra entre poder e cidadão? Será que seremos eternamente cativos da ignorância? Quantos prefeitos e governadores ignorantes e inoperantes ainda passarão sem nos darmos conta de que apenas nós podemos recusar suas presenças? Quanto tempo passará ainda até o dia em que não precisarmos mais ter que dizer que cada povo tem o governo que merece? Sei que sou minoria desse povo, mas não me vejo em nenhuma hipótese sendo representado por essa gente tão desqualificada, e nem quero mais passar por servil à burrice. Já está na hora daqueles que pensam um pouquinho mais, que não se locupletam com a barbárie na qual a cidade em que vivemos está se transformando, fazer algo a respeito disso. Está na hora da primavera ilhoa. Mas para isso, é preciso reconhecer, primeiro, que somos servis da ignorância, e, cientes disso, nos rebelarmos a favor da nossa liberdade.

ALÉM DO MAIS...
SOBRE A MARATONA CULTURAL
        Falando em prefeito, o da Ilha de Nossa Senhora dos Aterros, Dário Berger, é o exemplo ideal como personagem da pequena pensata acima. Acompanhei a Maratona Cultural de perto, e a todos os eventos que fui, incluindo o do cantor e compositor Lenine no encerramento – que lotou a avenida mais burguesa da ilha – pessoas voltavam para casa por falta de lugar.  A ideia da Maratona é exatamente o que se chama de política de Estado. Ou seja, quem faz, organiza, administra os eventos, fatos e objetos culturais é o povo, não o governo. A Maratona, para os mais desavisados, não é um projeto idealizado pelo ex-secretário Cesar Souza Júnior (ainda que a tenha usado como palanque eleitoral), mas pela Harmonia Produções. O Estado de Santa Catarina é apenas o apoiador, e não o governo. O único senão que faço é que trata-se de um projeto que deveria ter passado pelo aval do Conselho Estadual de Cultura, que é para isso que foi constituído e é para isso que serve. Infelizmente, o conselho está sendo omisso quando não denuncia o próprio limbo em que se encontra. O ex-secretário não fez nada do que prometeu na sua curta passagem pela pasta mais bizarra do governo do Estado, que mistura turismo, esporte e cultura. O ex-secretário não cumpriu com a tarefa que se propôs de lançar, ainda no ano passado, o edital de apoio à cultura, nem o fundo direto, nem o prêmio Cruz e Sousa, enfim, nada, absolutamente nada. O que temos, no fim e ao cabo é um roto falando do rasgado, porque o prefeito, no alto da sua sabedoria e da sua extrema erudição cultural, segundo a organizadora da Maratona, Paula Borges, e da imprensa presente, disse que a Maratona era “um evento insignificante, que não tem publico, não tem artistas, não tem boa programação, ou seja é um fracasso”. Espero que as urnas defenestrem de vez esse tipo de pensamento, infelizmente ainda apoiado pela maioria da população. Só nos resta saber se é por servilismo contumaz ou por ignorância mesmo.

10 de março de 2012

ARTE CONTRA A VIOLÊNCIA

  • Muitas vezes me sinto um desterrado dentro do Desterro. Olho em volta e não reconheço meus pares. Não pertenço mais ao modo como fui criado, dentro de uma cultura colona, católica, iletrada, na qual aos pobres como eu a vida só teria sentido em acordar as oito da manhã e fazer qualquer coisa que parecesse com arar a terra, semeá-la, orar para que dê frutos, esperar o fruto crescer e depois colher e agradecer. Não tenho crença alguma no trabalho, na propriedade, no dinheiro e nas coisas metafísicas, apenas na arte. Não há mistérios, dizia Fernando Pessoa, porque o único mistério é haver quem pense nele.

    Existem dois caminhos para quem teve a experiência de ler e compreender a teoria da mais-valia de Karl Marx. A primeira, e menos adotada, é ficar indignado e decidir não se vender por meros 30 dinheiros. A segunda é promover uma infrutífera luta de classes, a mais comum. Eu fui tocado pela primeira. Portanto, não me venham com meros 30 dinheiros, porque o tempo é de ouvir estrelas, ora direis, porque arte não é mercado.

    A segunda escolha exorbita qualquer um do irreal mundo do mercado, essa coisa diluída, ilusória, incerta e inventada para queimar livros e levar ao apogeu a imbecilidade humana. A saída não está na indústria cultural, cada vez mais massificada, mas na arte. A arte sem concessões, a arte modificadora, a arte não diluidora. Nada mais pobre do que a indústria da cultura, aquela em que o produtor diz o que o artista tem que fazer para agradar a um público e ganhar dinheiro. Artistas inventores, na boa e ainda válida acepção poundiana, não têm vez. Nada mais falso do que as justificativas e os objetivos para formatar projetos de leis de incentivo. Arte não é isso. Arte não tem que justificar nem objetivar. Não há pergunta mais estúpida nos formulários de inscrição para projetos do que “quais seus objetivos?”. Ao invés de perguntar o que você quer fazer?, perguntam por que você quer fazer? Ora, porque eu quero. Já não basta? Então me perguntem o “como” eu quero fazer.

    Mas políticos não têm capacidade intelectual para pensar e propor uma real, necessária e fundadora revolução nessa área. São ignorantes na insistência em manter sob uma mesma pasta as áreas do esporte, do turismo e da cultura. São anos de atraso e desvios de verbas para funções que não as de revolucionar, de modificar, de impedir a violência, que tem nos levado cotidianamente à barbárie. Só com arte se estanca a violência desmedida.

    A cultura perpassa tudo. O trânsito, a segurança pública, a saúde, a educação, todos os acertos e mazelas de qualquer compromisso público se resolvem com investimentos na área da cultura. Sendo assim, todas as secretarias deveriam ser de cultura. Secretaria de Saúde e Cultura, de Transportes e Cultura, de Segurança e Cultura. Imaginem um secretário da Casa Civil e da Cultura, porque o modo como atravessamos a rua, como escolhemos nossas profissões, como ficamos doente, como dirigimos violentamente, tudo isso é cultura. Mas para os governos, cultura é pagar um cantor popular, de preferência o mais diluidor e o que menos faz as pessoas pensarem, para que a máxima do pão e circo romano se concretize. Por isso, o ideal seria mesmo não a separação da cultura do esporte e do turismo, mas o acréscimo da cultura em todas as outras pastas, e a criação de uma secretaria exclusiva para as artes. Ideia típica de desterrados, vão dizer por aí.
  • Além do mais... A ponte

    Há duas semanas, o Diário Catarinense reportou a explosão voluntária de uma ponte pênsil nos Estados Unidos. Era parecida com a Hercílio Luz, mas bem menor, quase um pontilhão. Acompanhei os comentários dos leitores e fiquei impressionado com o fato de que a maioria queria fazer o mesmo com a ponte que liga o Estreito à Ilha.

    Pela lógica destes leitores, não haveria também nenhum problema em colocarmos abaixo o palácio Cruz e Sousa, a Catedral Metropolitana e o restinho de patrimônio histórico que ainda resta na Ilha.

    Este, aliás, foi o grande projeto do ex-governador e do atual prefeito: deixar as construtoras destruírem os últimos patrimônios históricos e culturais da cidade. Nunca dois governos fizeram tanto mal pela arte catarinense. O primeiro, por manter a ideia vinda do fascismo italiano (incluso o de pintar os prédios públicos de vermelho e verde) de que a cultura deve ser feita pelo governo, enquanto todos sabem que deve ser feita por artistas e pelo povo. O segundo, por omissão geral, não cumprindo desde o começo com a promessa de campanha de criar uma secretaria para a cultura, criar um fundo e lançar editais públicos.

    Agora, no apagar das luzes de oito anos de um mandato é que anuncia um edital minguado e um fundo quase sem fundos. Desse modo, para a triunfal vitória da burrice, o ideal mesmo seria explodir a Ponte Hercílio Luz. Dos restos da pólvora sairá a ridícula e falsa ideia de progresso, e a demonstração real e explícita do quanto somos ingratos com a história e com a arte, e provar uma certa macaquice com o ideal medroso e notadamente violento dos norte-americanos.

SOBRE O ÓDIO

a cena mais emblemática da insanidade coletiva causada não pelo vírus, mas pelo mentecapto presidente, é a do governador ronaldo caiado, de...